Retorno de filho pródigo vivido por Eriberto Leão atormenta família em A Mecânica das Borboletas
Por Miguel Arcanjo Prado
“Eu quero uma casa no campo […] onde eu possa plantar meus amigos, meus discos e livros, e nada mais”. Os versos da composição de Zé Rodrix e Tavito imortalizados por Elis Regina dão a tônica do sentimento do personagem vivido por Eriberto Leão, o filho pródigo de A Mecânica das Borboletas, em cartaz no Sesc Consolação, em São Paulo. Afinal, a obra traz um conflito entre o permanecer e o partir. Entre continuar uma história já estabelecida e criar uma nova vida.
O texto de Walter Daguerre traz clara inspiração do nomadismo proposto pela Geração Beat, cujo livro On The Road, de Jack Kerouac, é a maior expressão. A busca desenfreada pela transformação vinda do pé na estrada foi legitimada pelos beats, pais do movimento hippie e da contracultura das décadas seguintes. Tal procura norteia a obra.
A borboleta do título serve de metáfora ao discurso da encenação. Afinal, o inseto nada mais é do que um resultado de uma intensa transformação. Na peça, elas surgem no bem cuidado jardim onde a matriarca interiorana, vivida por uma densa Suzana Faini, depositou as cinzas de seu marido e a memória de um dos filhos.
Mãe dos gêmeos Remo e Rômulo, ela embarcou na loucura para conviver com a perda não só do companheiro, como também a do filho que fugiu na adolescência, Rômulo, sem deixar rastros de vida ou de morte.
Eriberto Leão assume este personagem com entrega cheia de paixão. Apesar dos clichês que o papel condensa, Leão encarna em Rômulo a mutação que a experiência traz. Tal desejo de partir veio do dos muitos livros lidos na adolescência e a sede de aventura que eles despertaram. Após rodar países, volta, 20 anos depois, como um escritor que vê sua fonte criativa secar e precisa retornar à origem de tudo.
Tal regresso desconcerta a ordem estabelecida naquela família que precisou sobreviver a tal desprezo de um ente que os deixou.
Remo, o irmão que ficou, é quem mais se revolta com o filho pródigo. Otto Jr. interpreta o personagem e cresce na verdade crua que ele representa. O ator consegue representar com veracidade a brutalidade da vida cheia de supressão de anseios daquele jovem largado naquele buraco do mundo.
Afinal, a ele restou a responsabilidade de tocar a oficina do pai, cuidar da mãe, perdida no mundo da dor, e casar-se com a ex-namorada do irmão, Liza. Na pele da personagem, uma segura Ana Kutner mantém o comedimento necessário para que o embate entre os irmãos seja o foco, sem deixar de defender a mulher que, apesar de ter permanecido por ali, consegue fazer um pequeno movimento revolucionário, representado pela criação da cooperativa de mulheres rurais que ela comanda, e ainda transgredir as regras sociais ao se envolver com o cunhado.
Paulo de Moraes assina a direção bem casada com o tom proposto pelo texto, que tem delicada luz de Maneco Quinderé. A cenografia, criada por ele em parceria com Carla Berri, propõe uma fusão entre os ambientes externo e interno da casa, numa metáfora de uma vida integrada à natureza, à qual anseia Rômulo em sua volta. Um vidro, ao fundo, bloqueia o horizonte daquela gente, numa alusão a uma vida condensada em si mesma, numa eterna repetição cotidiana.
O único ponto de escape é a moto Harley Davidson, colocada no plano superior do cenário, construída por Remo peça a peça numa espécie de utopia não concretizada de tentativa de escape, tal qual o irmão no passado.
O único pecado da obra é estender-se em um epílogo desnecessário após a epifania advinda do momento em que a motocicleta cumpre o papel de ser um instrumento de viagem sem volta e sem culpa para o personagem de Otto que, enfim, tem sua vez de viver.
A Mecânica das Borboletas
Avaliação: muito bom
Quando: sexta e sábado, às 21h; domingo, às 18h. Até 27/5/2012.
Onde: Teatro Anchieta do Sesc Consolação (r. Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, São Paulo; tel. 0/xx/11 3234-3000).
Quanto: R$ 32 (inteira); R$ 16 (usuário do Sesc) e R$ 8 (comerciários e dependentes)
Classificação: 12 anos
O enredo desta peça lembra muito uma obra de Jean Luc Lagarce “Apenas o fim do mundo”.