“Hair salvou minha vida”, diz Reynaldo Machado
Por Miguel Arcanjo Prado
Reynaldo Machado é do tipo que chega e acontece. Sem pedir licença. Sabe o que quer. E, mesmo quando parece não saber direito, diz com uma certeza profunda de tudo. Ainda que depois mude de ideia. Afinal, quem disse que artista precisa ser coerente? Na boca dele, tudo é verdade. E, na força contagiante de sua presença, a gente acredita. E torce por ele.
Em mais de 40 anos, o musical Hair lançou novos artistas onde foi encenado. Se a primeira versão por aqui lançou nomes como Antonio Fagundes e Sonia Braga, a remontagem da turma de hippies que chegou ao fim no último mês, em São Paulo, também apresentou ao público um nome forte: Reynaldo Machado.
Em uma simples frase, o ator precisa a importância em sua trajetória do personagem Hud, o ícone black power do jovem grupo “paz & amor”.
— Hair salvou a minha vida.
E não se trata de uma frase de efeito. O carioca de 22 anos, 1,86 metro de altura, 85 quilos e ritmista de tamborim da bateria da Império Serrano tinha tudo para não ser ninguém. Nasceu pobre, negro, de comunidade.
Até os seis anos, viveu em um internato. Mas resolveu transformar a revolta em arte. Foi sempre a estrela dos autos de Natal, Páscoa, Primavera ou qualquer outra data do calendário escolar que permitisse o palco.
— Com seis anos, já sabia o que queria para minha vida: ser artista. E é um problema quando alguém ainda criança já sabe o que quer.
Enfrentou todo mundo. A já distante família e a vida.
—Eu apronto mesmo. Preto e pobre tem de saber se defender. E acontecer.
Na vitrola da infância, os gringos Michael Jackson e Aretha Franklin se misturavam aos brasileiríssimos Roberto Carlos e Benito de Paula, criando o canto de Reynaldo. Nas oficinas de teatro da vida, o ator se moldou.
Na escola, se impôs. Foi perseguido, mas jamais se sujeitou. Preferiu virar a “atração-mor”. Para se defender, criou uma personagem, “titia”, que logo cativou a todos com o humor ácido de suas verdades nuas e cruas.
Aos 12 anos, encontrou abrigo na casa de dona Marieta. Uma senhora que o conheceu em um curso de música e decidiu ajudá-lo. Morou com ela até 2010, quando o câncer matou sua benfeitora.
Reynaldo viu seu mundo cair. Foi morar em um lugar barra pesada do Rio com um amigo travesti que amava cantar Happy Day. Três meses depois, o amigo foi morto. Gastou o resto do pouco que tinha para dar um enterro digno àquele que havia lhe estendido a mão. Foi no meio desse turbilhão que soube dos testes para Hair. Nem sabe direito como foi parar lá. Só sabe que, entre milhares, foi escolhido.
O sucesso do musical em um teatro no Leblon deu uma guinada em sua vida. Foi morar com amigos em um apartamento em Copacabana. Mas o dente de siso resolveu nascer justo na primeira semana. Teve de ficar na plateia até melhorar.
—Foi bom porque pude ver o espetáculo de fora. Chorei muito.
Com o primeiro salário, comprou instrumentos para o curso de percussão que dá em Petrópolis a crianças carentes. Aprendeu cedo que “hoje você tem. Amanha, não”. E que é preciso aproveitar os bons momentos.
Reynaldo cumpriu a temporada carioca e foi com a obra para São Paulo, onde boa parte do elenco original foi renovado por “atores de musical” locais. Mesmo assim, permaneceu até duas semanas antes do fim. Foi quando, em comum acordo com a direção, saiu, dias antes da derradeira (e lotada) semana popular no Auditório Ibirapuera.
—Não saí brigado com ninguém. Hair salvou a minha vida. Aprendi a ser mais educado, a amar as pessoas. Em Hair, não precisei usar a “titia”. Mas aqui em São Paulo as coisas não bateram como no Rio. Depois que saí, voltei para ver. Vieram me perguntar se eu estava com ciúme. Gente, ciúme de quê? O Hud já está aí há mais de 40 anos e já foi de tantos atores. Também me perguntaram como tive coragem de ver. Ué, gente, eu fui. O ator que me substituiu está de parabéns. E ponto. O Charles Möeller [diretor da obra], por quem tenho maior carinho, sempre me disse: “se a vida te der um limão, faca uma caipirinha” [risos].
Do um ano e meio como Hud, guarda lembranças engraçadas, como a da famosa cena em que o elenco todo fica nu.
—Nessa hora, eu ficava olhando para todo mundo, e via que as pessoas ficavam comentando o tamanho do p… dos atores. Um dia, no Rio, sei lá o que me deu e eu estava ficando de p… duro. Tive de fingir um desmaio [gargalhadas].
Apesar do bom humor permanente, as verdades de Reynaldo nem sempre são bem-vindas.
— Para mim, viver da arte do fingimento só funciona quando estou no palco e muito bem pago. Senão, eu sou sincero, meu bem. Se me zoam porque eu sou preto, porque não posso zoar quem canta desafinado? Só que eu digo na cara, não nas costas. As pessoas maduras continuam me adorando. É que eu digo as verdades com humor.
Ele comemora a ascensão dos musicais no Brasil, e ainda o crescimento no número de atores negros nos espetáculos. E arrisca o motivo.
— Você já viu coro só com branco funcionar? Eu não [risos]. É que negro, canta, né? Mas o problema é que agora virou moda todo mundo se descobrir ator de musical [risos]. E tem aquela besteira de preconceito, de ator “de teatro” não gostar de “ator de musical”. Isso é uma palhaçada, porque nos Estados Unidos, se você é ator está subtendido que você também sabe cantar e dançar. Aqui, tem de botar no currículo: “sou ator, cantor e bailarino”. Eu tenho uma preguiça de ter de dizer isso tudo… Mas sabe mesmo qual é a verdade? Ator que só faz teatro fala mal de quem faz musical por pura inveja. Porque ator de musical ganha dez vezes mais.
Quando questionado se não tem medo de ficar com a pecha de arrogante por expor seus pensamentos, Reynaldo diz que sabe “que a arrogância é muitas vezes arma de defesa”, mas que “o segredo é fazer a galera rir”.
— A minha vida tem uma coisa engraçada, todo lugar de onde fui expulso, depois voltei e me trataram como um rei.
Sabe entrar em palácio e em barraco com a mesma dignidade. Diz que gostaria de ter tido mais suporte da mãe, mas a falta de apoio foi parte crucial na sua formação e trajetória.
— Essa é a função do artista. Usar tudo de ruim que a vida lhe dá a seu favor. Porque saber tudo e ter tudo é um saco. Mas é claro que eu queria ter nascido rico [risos].
Como a gargalhada gostosa denota, Reynaldo não é do tipo que guarda raiva. Muito pelo contrário. É ciente da simplicidade da vida, em suas palavras: “a pessoa nasce, cresce, cumpre um objetivo e depois morre. E acaba tudo”. É por isso que tem urgência de “cumprir sua missão”.
—Eu acredito que eu vá ser um dos maiores artistas do Brasil. Eu só sou pobre por pouco tempo. Mas não coloca assim, senão vão sair por aí dizendo que eu sou arrogante [risos].
Fica tranquilo, Reynaldo. Com o tamanho do seu talento, só vai dizer isso quem tiver medo de você. Vai logo acontecer. E não peça licença.
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que história de vida linda!!!! parabéns pelo texto.