Cadáver de imigrante da fronteira entre México e EUA vira poesia teatral em Amarillo, no Mirada
Por Miguel Arcanjo Prado
Enviado especial do R7 a Santos*
Os movimentos migratórios fazem parte da história humana. E a motivação segue a mesma de nossos ancestrais: a sobrevivência.
O espetáculo mexicano Amarillo, destaque do Mirada, o Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos, toca justamente neste ponto nevrálgico: a busca por melhores condições de vida em outro país, no caso, atravessando a perigosa e vigiada fronteira que divide o México dos Estados Unidos. Que divide o Terceiro do Primeiro Mundo.
Com bela e inventiva encenação assinada pelo diretor Jorge A. Vargas, o texto de Gabriel Contreras parte do personagem interpretado pelo potente ator Raúl Mendoza, que congrega em si todos os migrantes, em um jogo teatral já estabelecido logo no começo com o público. Ele não é apenas um. É a soma de todos.
Amarillo é o nome da cidade do Texas para onde o imigrante sonha ir, em busca de dinheiro, deixando no México seu grande amor, em uma história tão repetida ao longo dos últimos tempos e que deixa, muitas vezes, cadáveres em seu rastro.
O enredo que poderia esbarrar fácil no clichê, é transformado em pura poesia pelo maduro Teatro Línea de Sombra, que existe desde 1993.
O grupo utiliza-se com propriedade de outras expressões artísticas como a videoarte, a dança contemporânea e as artes plásticas. A areia do deserto ganha lugar no palco enterrando sonhos e despedançando corações.
Com uma narratividade que conquista o espectador a cada imagem desenhada durante os 90 minutos da encenação, seja no palco ou na tela projetada ao fundo – uma extensão do tablado – o espetáculo comove sem precisar ser piegas.
O restante do elenco, Alicia Laguna, Antígona Gonzáles, María Luna e Vianey Salinas, contribui na primeira parte do espetáculo para que a história do personagem representado por Raúl seja contada da melhor forma possível, enquanto o ator Jesús Cuevas canta ao vivo e em voz gutural as músicas melancólicas e cheias de angústia compostas por Jorge Verdín e Clorofila.
Na virada do espetáculo, quando as atrizes deixam o posto de meras assistentes técnicas para ganharem presença cênica carregada de poesia, surge o outro lado da imigração: aquele que ficou, sem notícias, representado pelas mulheres deixadas pelos maridos que atravessaram a fronteira. Cheio de vigor, o elenco feminino ganha espaço, e Antígona González impressiona ao dar seu texto. É graciosa, forte e carismática.
O teatro contemporâneo muitas vezes se utiliza de elementos tecnológicos sem muita consciência. Gerando, muitas vezes, a sensação de que os recursos multimídias estão ali apenas por estar. Isso não acontece na montagem.
Em Amarillo, além do vertiginoso trabalho feito pelo elenco, cada efeito é justificado e contribui à história contada da forma mais inventiva possível, gerando um espetáculo de qualidade artística incomensurável.
Amarillo
Teatro Línea de Sombra (México)
Avaliação: Ótimo
ENTREVISTA COM O ELENCO
“Dá vontade de ficar no Brasil”
A reportagem do R7 conversou com dois atores de Amarillo, Raúl Mendoza e Antígona Gonzáles, logo após a última sessão do espetáculo mexicano no Festival Mirada, nesta quarta (12), na festa noturna à beira da piscina do Sesc Santos.
Entre outras coisas, contaram que a montagem segue sua saga internacional – das 140 apresentações já feitas, metade foi fora do México. Até o fim do ano, estarão na Argentina, nos Estados Unidos, na França e no México – onde se apresentarão em Ciudad Juarez e Chihuahua, na fronteira com os EUA.
Leia a entrevista exclusiva:
Miguel Arcanjo Prado – O espetáculo tem um trabalho de corpo muito exigente. É muito pesado fazê-lo?
Raúl Mendoza – É pesado, sim. Tem de estar descansado. Semana passada fizemos em Bogotá, em uma altitude alta. Foi complicado… Em Santos o problema já foi a umidade [risos]. Mas todos nós no grupo viemos de uma formação de teatro de corpo.
Miguel Arcanjo Prado – Por que você escolheram falar da imigração ilegal entre México e EUA?
Raúl Mendoza – Ninguém está longe de uma situação migratória. Todos temos histórias com a imigração. Não só para os Estados Unidos, mas de imigrantes que vieram para o México ou o Brasil por conta da Segunda Guerra. O espetáculo quer dar visibilidade a este fenômeno. Vamos no particular para falar do universal. Hoje já africanos que vão para Europa, latino-americanos que vão para o Brasil, e sempre há alguém ganhando muito com isso. O tráfico internacional de pessoas é um excelente negócio.
Miguel Arcanjo Prado – Foi difícil vir para o Brasil?
Antígona González – Sim, porque o Instituto Nacional de Belas Artes do México, que está apoiando outras companhias mexicanas no Mirada, não nos apoiou com as passagens aéreas. Disseram que nosso espetáculo já havia viajado muito. Então, só conseguimos vir graças ao patrocínio da Robert Sterling Clark Foundation, dos Estados Unidos, que financiaram nossas passagens.
Miguel Arcanjo Prado – O espetáculo gera imagens belas. Percebe-se a preocupação de vocês em inovar.
Raúl Mendoza – Amarillo é uma espécie de tese de um projeto que buscou nos acercar de outras artes, como as artes plásticas e a dança. O mais rico é a busca por novas linguagens, novas maneiras de dizer.
Miguel Arcanjo Prado – O espetáculo gerou algum desdobramento a vocês?
Raúl Mendoza – Hoje estamos envolvidos com os temas da imigração. Passamos a ser testemunhas do que ocorre. Conseguimos abrir um diálogo interessante com outros países. Muita gente na Europa, onde nos apresentamos, nem sabia que na fronteira entre Estados Unidos e México há um muro.
Miguel Arcanjo Prado – O que vocês estão achando do Brasil?
Antígona González – Eu amo o Brasil e estou apaixonada pelos brasileiros. Quero ficar por aqui. Todo mundo nos trata incrivelmente bem. O tratamento é muito melhor do que nos países de primeiro mundo onde estivemos. Aqui tem uma questão humana muito forte.
Raúl Mendoza – Eu nem posso falar muito [risos]. O mais rico de estar no Brasil é saber que você está na América e enfrenta um outro idioma, o português. Aqui há uma outra energia e todo mundo nos trata muito bem. Também temos a sensação de que aqui há mais dinheiro para o teatro do que no México. Acho que o Mirada é um canal para melhorar as relações entre os países Latino-americanos. Temos de quebrar as fronteiras e permitir que as pessoas se misturem. O século 21 criou muitos guetos, mas o importante é se misturar. E o Mirada faz isso.
*O jornalista Miguel Arcanjo Prado viajou a convite do Sesc Santos.
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