Cacá Carvalho tenta virar um homem ordinário
Por Miguel Arcanjo Prado
Hoje, todo mundo é alguma coisa. E a vida parece bem mais glamourosa do que é realmente. Nem que seja no Twitter ou no Facebook, caso a realidade não colabore muito. Certamente o furor das redes sociais, nas quais as pessoas constroem versões de quem são, instigaria, e muito, o dramaturgo italiano Luigi Pirandello (1867- 1936).
Afinal, essa construção de um ser a partir do olhar do outro é a grande questão de seu livro Um, Nenhum e Cem Mil, adaptado para os palcos por Stefano Geraci e Roberto Bacci no monólogo umnenhumcemmil, que o ator Cacá Carvalho apresenta até este domingo (23) no teatro do Sesc Bom Retiro, em São Paulo. A montagem é uma realização da Casa Laboratório para as Artes do Teatro e Fondazione Pontedera Teatro, com produção do Núcleo Corpo Rastreado.
A peça conta a história de Vitangelo Moscarda. Este um dia fica intrigado quando sua mulher – “que só serve para achar defeitos no marido” – lhe faz uma observação sobre o formato de seu nariz, que ele jamais havia se dado conta. Nisso, ele percebe que é resultado de uma imagem que os outros construíram dele e mergulha em uma crise existencial.
O diretor Roberto Bacci transforma a encenação em metáfora do recado do texto. Em um palco de recursos cenográficos diminutos propostos por Marcio Medina, Cacá incorpora o filho de banqueiro que termina limpando o chão, para tentar ser alguém comum e não aquele construído pelo olhar alheio. Singelas, a luz de Fábio Retti e a música de Ares Tavolazzi são quase anônimas, em cumplicidade com a proposta cênica.
A montagem encerra trilogia com textos de Pirandello feita pela dupla Carvalho e Bacci, junta há um quarto de século, que realizou também O Homem com a Flor na Boca, em 1993, e A Poltrona Escura, em 2003.
A premissa do texto de umnenhumcemmil é realmente instigante. Afinal, na contemporaneidade cada vez mais importante é o que se aparenta ser, em contraponto aos reais valores.
Todos querem ser vistos, notados, admirados, mesmo que não tenham qualidades para isso. Se falta estofo, o mundo virtual ajuda a criar aura de fantasia a respeito de qualquer um. É exatamente disso que o espetáculo debocha elegantemente.
Cacá abraça seu personagem com veemência, e não o abandona nem quando o público demonstra estar um pouco enfadonho – afinal é um monólogo de 80 minutos. Talentoso, o ator brinca com os instrumentos do ator, como a voz, o corpo e a expressão, e vai fundo nas matizes humanas.
Cacá está tão imerso na busca que move seu personagem – e ele próprio, é claro – que resolve levar parte da plateia para o centro do palco, aos poucos. Recurso talvez não tão feliz, mas compreensível.
Diante a luz da ribalta, esse espectador que foi pego pela mão pelo ator fica exposto contra a sua vontade. É violento. Mas talvez seja aí que more o real sentido disso. Essa exposição do público no palco – mesmo que involuntária – serve de metáfora para a busca de Vitangelo (e de Cacá), que se despe de suas máscaras de forma intensa. O ator não exige que o público faça nada. Apenas que permaneça sentado, no tablado, diante dos olhares de quem ficou na plateia. E continua seu espetáculo, muitas vezes interagindo com seus eleitos, que permanecem petrificados alguns.
Umnenhumcemmil mostra que tirar a carapuça dói. Expõe. Tal desejo soa forte num mundo onde a individualidade é exacerbada com máscaras pungentes que costumam resistir até ao mais terrível vendaval. Afinal, ninguém quer ser ordinário.
umnenhumcemmil
Avaliação: Bom
Quando: Sábado, 19h; domingo, 18h. 80 minutos. Até 23/9/2012
Onde: Sesc Bom Retiro (al. Nothmann, 185, Bom Retiro, São Paulo, tel. 0/xx/11 3332-3600)
Quanto: R$ 24 (inteira); R$ 12 (meia-entrada e usuários do Sesc) e R$ 6 (comerciários)
Classificação: 14 anos
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