Crítica: Em Facas nas Galinhas, mulher supersticiosa trai o marido e fica mais culta com o amante
Por Gabriela Quintela*
Especial para o Atores & Bastidores
A história de uma camponesa casada com um lavrador bruto, e que acaba se interessando pelo dono do moinho, parece banal. Mas o enredo de Facas nas Galinhas, que foi a estreia do dramaturgo escocês David Harrower, serve apenas para detonar reflexões sobre o processo de aprendizagem e suas consequências.
Encenada pela primeira vez em 1995, hoje é considerada a peça escocesa com mais montagens pelo mundo (25 países) desde Peter Pan.
Na montagem dirigida por Francisco Medeiros com a Cia. Barracão Cultural, em cartaz em São Paulo, não sabemos o nome da protagonista (vivida por Eloisa Elena). O moleiro (Thiago Andreuccetti) fica sabendo, mas não nos conta. Ele também é chamado apenas de moleiro, sua ocupação. Já a mulher, cuja principal tarefa é cumprir seus deveres de esposa, é chamada, assim, de mulher. O único a ter nome é William, o marido (Cláudio Queiroz) aparentemente infiel. Seu apego pelos cavalos lhe rende até um apelido, artigo de luxo nesta obra estranha e muito concisa: o de “potro William”.
Também não sabemos em que época ou lugar se passa a história, mas parece ser na Europa, na transição entre Idade Média e Moderna.
O cotidiano da mulher não lhe permite nenhum desenvolvimento: sozinha durante o dia enquanto o marido trabalha, ela simplesmente observa a própria mão ou enfia facas nas galinhas para poder cozinhá-las.
Vive a ânsia em nomear as coisas que vê (numa peça que despreza nomes de personagens), num degrau muito inicial da busca pelo conhecimento. Mesmo não sendo analfabeta, ela se assemelha a uma criança descobrindo a linguagem. Ainda não pensa no abstrato, está mais focada nas coisas que observa todo dia: árvores, pássaros, poças e nuvens de cores diferentes.
Conflitando com essa busca por algo que amarre seus pensamentos, ela morre de medo de Deus e do diabo. Essa alienação pela religião está presente em toda a vila, cujas superstições têm como alvo preferido o tal moleiro, muito odiado por não depender do suor para viver, apenas de uma pedra e dos grãos alheios.
Ao contrário dos homens da vila, o moleiro tem tempo de sobra para ler e escrever, e é ele quem fascina a mulher e lhe apresenta uma caneta-tinteiro. A camponesa então aos poucos se transforma, constrói uma identidade que não é mais a de “mulher do potro William”, mas dela própria. Mas o conhecimento traz também a perda da inocência. A nova mulher que surge sabe mais sobre si mesma e sobre o mundo, e sabe também mentir e matar.
Assim como a contextualização de lugar e tempo, a cenografia é enxuta. Mas engenhosa. O cenário assinado por Marco Lima é um palco de madeira, circular e sempre em transformação. Pode virar o moinho, a pedra moedora ou o lar do casal. Um sistema de cordas cria sons e efeitos inesperados. A comida, quando aparece, é mastigada e engolida, e no copo há leite mesmo.
Em vez de mostrar apenas uma jornada individual em busca de saber, Facas nas Galinhas põe em cena a transição que a humanidade fez, do campo para a cidade, e de uma era das trevas para uma era de luz… e de inocência perdida. Ao mesmo tempo, nos faz de certa forma reviver alguns momentos da infância de que nem nos lembramos: quando ainda não tínhamos descoberto sequer o que há de mais elementar no conhecimento, e a linguagem era um mistério.
*Gabriela Quintela, jornalista formada pela UFBA, é editora de home e colunista do R7. Visite o blog dela!
Facas nas Galinhas
Avaliação: Bom
Quando: Sextas e sábados às 21h30 e domingos às 19h. 70 min. Até 28/4/2013 (nos dias 30 e 31 de março não haverá espetáculo)
Onde: Tucarena (rua Monte Alegre, 1024 – entrada pela rua Bartira, Perdizes, São Paulo, tel. 11/xx/3670-8453)
Quanto: R$ 40 (meia entrada: R$ 20)
Classificação etária: 12 anos
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A parte da trama sobre a aprendizagem é bárbara, porém confesso que essa parte do adultério é de meu desgosto. Não concordo com a banalização da traição. Mas consigo entender a complexidade dos personagens.