Crítica: Inconsequente, Madame B somos todos nós
Por Juan Manuel Tellategui*
Especial para o Atores & Bastidores
Uma rua deserta. O teatro quase escondido. Só uma pequena luz indica que ali, no meio do bairro “tranquilo” da Barra Funda, há uma sala, um espaço alternativo de teatro, a Casa Livre. Após pegar os ingressos para ver Madame B – Fita Demo, o bilheteiro indica que a peça começa ali fora mesmo. O publico vai se aglomerando na entrada com cara de incerteza.
Na calçada, se aproxima um moço de uns 30 e tantos anos, vestindo umas calças legging vermelhas, coturnos, uma regata de mangas cortadas e óculos escuros. Pergunta se a gente está ali pela audição. As pessoas não sabem o que responder. Ele, mesmo sem resposta concreta, fica com certo nervosismo, aguardando.
Uma moça, também de uma aparência próxima aos 30 e tantos, sai da porta contigua à porta do teatro e vem em direção a nós. Pergunta se a gente está ali pela audição de Los Primatas. A gente não sabe o que responder, mas ninguém é inocente, todos estamos ali por uma peça. Ela veste uma minissaia de um tecido justo plastificado preto, coturnos estilizados femininos, jaqueta de couro e também óculos escuros.
Ambos parecem ter ficado num tempo de rebeldia não satisfeita na adolescência, têm sede de vingança, de rock, de punk-rock. Enquanto ela diz: “Bom, tranquilos, é só a gente então. Melhor! Alguém vai querer uma?” – enquanto reparte latinhas de cerveja, bem gelada, entre os “que esperam para uma suposta audição” e que quiserem beber uma.
Ele vai até a cortina metálica do lado e coloca um cartaz com o nome do espetáculo: Madame B. Levanta a cortina e somos convidados a entrar na garagem.
Estética de quadrinhos
A cenografia é “liquida”. Papelão. As bordas com linhas pretas remetem à estética das histórias em quadrinhos. Quase uma visão pré-cinematográfica, um storyboard. A linearidade da narrativa se apresenta em forma de sequências fragmentadas. Recortes, porções mínimas que dão conta de uma totalidade que se entende em forma elíptica.
Essas elipses ou lacunas são o convite que se faz implicitamente ao espectador para participar ativamente da construção dessa narrativa, preenchendo de sentido com as referências próprias de cada espectador.
– Se você esta vendo este vídeo, é que nós estamos mortos.
Falam logo ao início para uma câmera de visão noturna que projeta na tela de uma televisão na sala de ensaio da garagem. Essa visão quase de voyeur , de quem espia com a impunidade de estar assistindo à câmera de segurança, acompanha toda a ação.
As fragmentações alternam-se entre fragmentos de situações onde mostram uma mulher que recebe compras do mobiliário da sua casa e na entrega desses móveis – de papelão – acaba pagando com cartão de crédito e fazendo sexo com o entregador, com intervenções da banda Los Primatas que, depois de cada uma dessas situações, interpreta uma canção que dialoga com o que aconteceu.
A cada nova cena, o ar de decadência, submundo e desespero vai aumentando. Na última entrega de móveis, o entregador diz que já não será possível deixar os móveis se o pagamento da divida não for feito em cash e entrega à mulher um frasco – por conta da casa – de veneno. Ela o toma e morre. Só que ressuscita e o mata a facadas. A cada facada aparece um pingo de sangue cenográfico do mesmo estilo que aparecem nas histórias de quadrinhos, até que finalmente faz descargas elétricas nele, de onde também em cada mão saem raios do mesmo estilo.
Vida demo
A ideia demo pode ser daquilo inacabado, mas que não precisa ser, senão, não seria demo. Um demo permite capturar “a alma” numa fita que o registra e que permite voltar a escutá-lo.
Se tomarmos a vida como demo, ela não nos permite dar um acabamento final de como gostaríamos que as coisas sucedessem, porque ao mesmo tempo em que estamos vivendo e elegendo caminhos outros imponderáveis sucedem. Mas o jogo se estabelece porque conhecemos quais são “as regras” que nos permitem seguir para continuar formando parte dela.
O registro da fita cassete são as nossas lembranças, que cada vez que voltamos sobre elas como quem reescuta esse demo se escutam coisas diferentes, ou talvez se escutam sons que antes passavam desapercebidos, e essa lembrança se reconfigura a cada vez que a escutamos, porque toda lembrança esta ao mesmo tempo atravessada de fragmentações, de reconstrução e de imaginação.
Isso é o que acontece quando observamos que a moral do romance ainda permanece vigente nos nossos dias. Um demo que sendo escutado de novo, voltando sobre as suas lembranças, insatisfeito da realidade que é, se refaz atravessando-se de aspirações e ilusões se configurando outra pessoa a partir desse estado “wannabe”, pretendendo aperfeiçoar ilusoriamente esse demo-vida, “hipotecando o futuro”, como diria Bauman.
Lado B de Madame Bovary
Analogamente Madame B. [fita demo] é também o primeiro single da anti-banda “Los Primatas”.
Madame B. faz referência a Emma Bovary, mas “B” também poder-se-ia associar à imagem do lado B da fita cassete. Lado B é o lado oculto, aquilo que forma parte simbioticamente de uma unidade que tem uma cara visível, o lado A.
B também é a alternativa de um plano A falido. O plano B é de emergência, porém não tem as sutilezas nem diplomacias que tem o “A”. O “B” tem natureza alternativa, arbitraria, desesperada, inconsequente. Madame B é aquela que no seu desespero de ser Madame A não mede as consequências que implicam esse câmbio.
Finalmente os músicos falam a essa câmera dizendo: “Se você esta vendo este vídeo, é que nós estamos mortos”.
Bomba na plateia
Uma caixa tem explosivos. Eles convidam a plateia a pegar alguns deles. Acendem um mostrando tudo à câmera e saem correndo pela rua. Nós, o publico, seguramente explodimos e a câmera registrou esse momento. Quem encontrar a filmagem saberá o que realmente foi que aconteceu.
O sistema econômico e as imposições do “estilo de vida” criam uma neurose de insatisfação. Mas também dão a possibilidade virtual de obter aquilo que você quer, para ser aquilo que você que ser. Com os créditos se criam dívidas, e o pagamento cada vez vai sendo impossível de cancelar. O corpo como moeda já não é suficiente. A morte não é suficiente, pois, após uma morte, terá outro se endividado, a mesma situação, impossível de se regularizar. Madame B também somos todos nós.
Criação em processo colaborativo envolvendo artistas de diversos países, com proposta inicial apresentada pela atriz Mariana Senne, da Companhia São Jorge de Variedades. Direção de Cibele Forjaz, trabalho de corpo de Lu Favoretto, dramaturgia do português Jorge Louraço e cenário do artista plástico alemão Jan Bankoff. Iluminação de Wagner Carvalho e direção musical de Luiz Gayotto. Provocação cênica de Georgette Fadel. Direção de Produção de Carla Estefan. Em cena, a brasileira Mariana Senne e o basco Ielxtu Martinez Ortueta.
*Juan Manuel Tellategui é ator.
Madame B – Fita Demo
Avaliação: Muito bom
Onde: Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. 80 min. Estreia em 8/3/2013. Até 31/3/2013.
Onde: Casa Livre (r. dos Pirineus, 107, Metrô Marechal Deodoro, São Paulo, tel. 0/xx/11 3257-6652)
Quanto: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia-entrada)
Classificação etária: 14 anos
Leia entrevista com a diretora e o elenco da peça
Veja o vídeo de divulgação da peça Madame B – Fita Demo
Leia também:
Fique por dentro do que os atores fazem nos bastidores
Bem redigido o texto! Parabéns ao autor.
Parabéns pelo texto, bem argumentado e bem estruturado. E parabéns por dar espaco para o teatro!!!! Vou ver o espetáculo neste fim de semana depois de ler esta crítica.