Crítica: Musical Avenida Q quebra tabu do politicamente correto com bonecos e temas adultos
Por Miguel Arcanjo Prado
O mundo atual anda tão careta que daqui a pouco não será possível falar de nada. Tudo é motivo de processo e celeuma. Uma preguiça só. Mas que bom que ainda há espaço no entretenimento de massa para achincalhar justamente essa ideia de perfeição quadrada e fajuta que os brasileiros tentam a todo custo importar dos norte-americanos. Como se nossa irreverência não fosse mil vezes melhor.
O musical Avenida Q, em cartaz por curta temporada no Teatro Sérgio Cardoso, é justamente um grito de basta em meio a tanta babaquice. E vem da Broadway. Porque nem os yankees conseguem suportar o mundo perfeitamente irreal que inventaram.
O musical começa deixando claro, logo de cara, que a vida na metrópole não é tarefa fácil. Seja em Nova York, onde a história se passa, ou em São Paulo. Se não tem grana, você não vale nada.
Ainda mais o jovem perdido e recém-chegado, naquela crise existencialista sem fim. A vida segue, sempre veloz e fria, e muitas vezes falta alguém para desabafar, ou coragem para se assumir o que se é. Tudo isso está no palco, com bem resolvido cenário de Rogério Falcão.
A produção mistura atores a bonecos bastante parecidos aos Muppets. No começo, o espectador fica confuso, sem saber se olha para o boneco ou para o ator que o manipula, mas, com o desenrolar da história, vai entrando na convenção.
Engana-se quem pensa que os fofos bonecos são dóceis. Sem medo do politicamente correto, os personagens de Avenida Q são duros, cruéis, boca suja, racistas e, sobretudo, críveis. Porque se parecem com alguém bem próximo de cada um de nós, por mais que tentemos esquecer.
A coragem de realizar uma produção que toca em temas muitas vezes considerados tabus é o grande acerto da montagem que tem letras e músicas de Robert Lopez e Jeff Marx, também criadores do roteiro, que no Brasil ganhou versão de Claudio Botelho e direção original de Charles Möeller, a talentosa dupla dos musicais cariocas.
A direção da montagem paulistana atual é assinada por Christina Trevisan, com direção musical de Adriano Disidney. Ambos deram conta do recado muito bem, e a obra apresenta um conjunto harmonioso, que consegue fisgar o espectador.
Tudo se passa em uma avenida da periferia nova-iorquina habitada por personagens marginais ao dinheiro e a fama que a Big Apple promete a todos, mas nem sempre dá. Estão por lá, esperando que o destino um dia se lembre deles.
E tem de tudo nesta rua: o casal formado por uma psicóloga oriental e um gordinho que vive às custas da mulher; um ex-astro mirim de série cômica da TV, que cresceu e não deu certo; um gay trancado no armário a sete-chaves apaixonado pelo seu colega de quarto machão; uma professora primária romântica que sonha com um grande amor; e o recém-formado sem rumo na vida, entre outros.
O elenco está afinado e bem resolvido com as marcações, ainda mais difíceis por conta de terem de manipular os fantoches. Marilice Cosenza mostra segurança e talento ao interpretar duas personagens antagônicas. Ela primeiro enternece a plateia com a mocinha da história, a doce professora primária Kate Monstro. Logo em seguida, causa surpresa no público ao surgir cheia de atitude como a estrela de cabaré Lucy de Vassa, rival da primeira na disputa pelo coração de Princeton, o recém-formado que protagoniza a obra.
Este último é interpretado por Roberto Donadelli, também responsável pelo boneco Rod, o gay enrustido. Donadelli começa a obra com certo histrionismo, mas logo pega as rédeas de seus personagens à medida que os mesmos se tornam mais densos e consegue reverter a primeira impressão com talento e entrega.
Outro destaque do elenco é Carla Masumoto, na pele da psicóloga Japa Neusa. A atriz tem vida e carisma, sempre que surge em cena é um deleite para a plateia.
Ainda estão no elenco Will Anderson, Leandro Lacava, Adriano Disidney, Andreza Meddeiros, Rafael Pucca, Marcos Lanza e Talitha Pereira.
Avenida Q é um musical tão desafiador na forma de conduzir sua temática que chega a colocar um nó na garganta da plateia quando apresenta um dançante número que diz que todos somos racistas. Ou ainda quando entra no espinhoso tema da pornografia na internet, que muitos veem, mas poucos confessam. E acerta ao assumir cacos contemporâneos, como em criticar o deputado federal Marco Feliciano com sua luta contra os gays ou colocar na boca dos bonecos o refrão do hit da funkeira do momento, Anitta.
O musical segue com ritmo até o momento do intervalo, longo demais e que acaba tirando parte do público do clima da peça. Depois, voltar é mais complicado, sobretudo pela longa duração – são 135 minutos. Um corte certeiro teria feito muito bem à montagem.
Avenida Q joga luz à recorrente infantilização dos adultos no mundo pós-moderno. Astuta, a obra utiliza bonecos para dar aquela sacudida em marmanjos e crescidinhas de hoje, lembrando-os de que a vida adulta não é nada fácil e precisa ser encarada de frente. Colinho da mamãe não dá mais. Nem se esconder atrás de fofos emoticons. Porque de bonzinhos, os bonequinhos não têm nada.
Avenida Q
Avaliacao: Bom
Quando: Quarta e quinta, 21h. Sábado e domingo, 16h. 135 min. Até 25/8/2013
Onde: Teatro Sérgio Cardoso (r. Rui Barbosa, 153, Bela Vista, São Paulo, tel. 0/xx/11 3288-0136)
Quanto: R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia-entrada)
Classificação etária: 14 anos
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Quando você escreveu esse texto, estava numa “vibe Rock´n´Roll” (risos)! Não sou falso moralista e, em certo aspecto, até concordo que a arte deva quebrar certos paradigmas, mas penso que deve haver uma coerência no discurso e um objetivo além do simples ato de chocar para criar polêmica e consequente repercussão midiática (estratégia de muitas subcelebridades atuais). Pelo que li do texto, Avenida Q tem densidade temática e tem meu respeito, ainda que eu seja avesso a peças nesse formato (e mais ainda em relação ao grupo Satyros).