Coluna do Mate: A sedução do teatro de feira
Por Alexandre Mate
Especial par ao Atores & Bastidores*
“Quando o muro separa uma ponte une
Se a vingança encara o remorso pune
Você vem me agarra, alguém vem me solta
Você vai na marra, ela um dia volta
E se a força é tua ela um dia é nossa
Olha o muro, olha a ponte, olhe o dia de ontem chegando
Que medo você tem de nós, olha aí.
Você corta um verso, eu escrevo outro
Você me prende vivo, eu escapo morto
De repente, olha eu de novo
Perturbando a paz, exigindo o troco”
Pesadelo,Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós
Olha aí, ao consultar a origem histórica da palavra feira pode-se levar um imenso susto: do latim fḝrîa, a palavra refere-se, inicialmente, a dia consagrado ao repouso, festa, férias; folga, descanso. A palavra ganha, já ao tempo de sua criação, conotação dita vulgar, referindo-se indiretamente a mercado. Tal modificação semântica ocorre em razão de muitos dos dias de férias ou de festas existirem como consagração aos rituais de natureza religiosa e, por conseguinte, ao livre comércio, ou ao comércio praticado tendo em vista data consagrada. Em boa parte desses casos, muitas das práticas (e até hoje, também, em certos locais mais distantes do capitalismo selvagem), o comércio concerne à troca, escambo. Importante lembrar, nesse particular, que dia de feira ou de festa é aquele consagrado ao ócio de boa parte da população. Ainda nesse particular, concernente ao dia de folga, muitos desses dias eram consagrados à paz e à tranquilidade. Portanto, com o relaxamento do corpo e distensão do espírito, homens e mulheres estariam mais dispostos a relacionar-se com ações mais distanciadas de seu cotidiano. Até hoje é assim.
Apesar de ainda não totalmente explicado, de acordo com certa tradição cristã, domingo é o dia de descanso, consagrado à paz, à tranquilidade, ao devaneio do corpo e do espírito… Em oposição a este, os próximos dias àquele consagrado ao descanso, em língua portuguesa, são cinco dias cuja designação recebe um adjetivo numeral ordinal a concordar com o substantivo feminino. Perdida a excepcionalidade do dia de festa, tanto a feira livre como o teatro de rua, atualmente, acabam por ser praticados em todos os dias da semana e com o mesmo sacrifício dos dois tipos de categorias que representam no sentido de “prender” e estender certo estado de distensão do transeunte.
De qualquer modo, a convenção do(s) dia(s) de descanso, pela permanente desigualdade entre os que têm e os “despossuídos”, os dias de feira se estenderam de segunda a segunda. Gente à margem dos sistemas constituídos.
Gente que precisa, literalmente, montar a cena (a raiz de lugar em que se (re)apresenta do grego sk, correspondendo a skene). Artistas do teatro de rua e os feirantes têm muitas semelhanças em seu trabalho, senão vejamos:
Preparação do “cenário” ou Adequação ao cenário
No dia de trabalho, ambos precisam sair muito antes de casa, com os apetrechos às costas e a superdisposição no corpo. Imaginemos que os apetrechos já estejam colocados no meio de transporte. Ao chegar no lugar de seu trabalho, rapidamente, e por intermédio de sua força física, artista e feirante transformam o lugar indistinto em espaço de trabalho, que brevemente, “iniciada a função”, propiciará uma troca significativa de experiência.
Preparado o cenário: A função
Sob sol (escaldante ou tépido), chuva forte ou chuvisco, com ou sem aragem… os artistas da cena de rua, montado o cenário, desenvolvem expedientes para chamar o passante. Durante a função, ambos (feirantes e artistas) farão o possível para conservar e manter os sujeitos do processo de troca atentos e propensos ao ato concreto.
– Moça bonita não paga, mas também não leva!
– Quem pode colaborar com o próximo número?
– Olhaí, olhaí… tá fresquinho. Pode até apalpar pra sentir o gostinho da fruta… – Tem alguém corajoso que pode colaborar?
Os bordões se seguem, permanentemente desafiando e conclamando os que passem e os que se aproximam para intervir e dar completude à função.
Na rua, os que passam, os que compram, os que assistem… de modos diferenciados, mudam suas funções sociais: assumem novos papeis. Artistas de rua precisam ser sedutores! Precisam ter carisma. Precisam trazer para perto a gente que passa. Desse modo, e pouco importam as condições exteriores (e tantas vezes as interiores também), os artistas da rua “vendem seu peixe”. Desenvolvem, com o que pode (e com o que não podem) o seu “a que viemos!”. Do mesmo modo como uma feira ser constituída por diferentes mercadorias: frutas, peixes, bugigangas, bananas etc, espetáculos também têm gêneros diferenciados, entretanto, os estratagemas de conquista precisam ser reiteradamente repetidos. Trata-se, afinal de sobrevivência.
Assim, quando os feirantes vendem, quando os artistas recebem a participação em determinada cena (cuja partitura está permanentemente aberta) ou quando recebem o aplauso e a conversa final, para ambos, a função se cumpriu.
(Desmontando o cenário): Completa a função
Novamente, e de modo semelhante, feirantes e artistas guardam os apetrechos, desmontam a barraca, carregam o meio de transporte usado e dirigem-se para suas casas. Às vezes, os feirantes param nos entrepostos para reabastecer-se de mercadorias (mais horas de trabalho); artistas, às vezes, param na 25 de Março para restaurar suas traquitanas de uso.
Trabalho duro e estafante, mas que conferem alegria ao viver, e talvez, dos que assim trabalham poucos gostariam de mudar.
Estranhos fenômenos de escolha para ser e estar no mundo.
Invariavelmente, o teatro e o comércio populares foram sempre praticados por gente desterrada, à margem. Indispostos quanto ao prestígio e impossibilitados de acesso ao construído e instituído pelos Estados, os expulsos do mercado, teimosamente, criaram brechas para sobreviver e aporrinhar a paciência de quem gostaria de ver tudo esquadrinhado (em seus respectivos quadrados…). Até onde se conhece, de qualquer modo, isso foi assim. Antes, sobretudo, a contingência: vender o que se produzia, o que se trocava, por uns; por outros, a expulsão da pólis, da ágora e dos teatros… Com o fluir dos tempos, muitas vezes, a opção por estar à margem, por querer estar mais próximo de outro estado e circunstância de aproximação. Portanto, no mesmo (e adverso) sentido: feirantes e artista de rua sempre estiveram fora do mercado!
De qualquer forma, terminada a função, antes ou depois da parada para reabastecimento, os comentários sobre o vivido e o trocado caracterizam-se em narrativas tão importantes quanto o futebol, a telenovela, as conquistas amorosas… A oralidade reina antes e depois, as relações do cotidiano preenchem a vida.
Daqueles primeiros e aludidos dias de festa – que segregaram em centro e periferia a desigualdade entre os que têm e os que, quase além de si, pouco têm -, a feira do viver estendeu-se pelos tempos e, de resistência em resistência, permanece. A gente, à margem dos sistemas, não conseguiu deixar tratados, compêndios, tomos de saberes, mas, burlando tantas ordens, proibições e perseguições, legaram episódios muito interessantes.
Um pouco da resistência do teatro popular: o teatro de feira
De certo modo, o teatro de rua, apresentado no corpo vivo da cidade, se caracteriza em certa distensão das atividades mais ligadas ao cotidiano dos transeuntes, dos andarilhos, dos desmotorizados… Entretanto, a linguagem teatral, no que concerne à recepção, é complexa, intensa, múltipla e paradoxal. A mesma cena pode ser percebida por inúmeras, e às vezes, opostas interpretações. No teatro de caixa, tudo é preparado para que o foco de atenção do espectador conflua para a cena, mas no intermitente conflito de focos, tudo precisa fazer sentido maior para prender a atenção dos sujeitos expectantes, exatamente onde tudo conflui para a dispersão. Em razão disso, e pelo fato de múltiplas terem sido as experiências de resistência dos artistas da rua e o desenvolvimento de expedientes para sobreviver é que o teatro de rua, talvez de todas as modalidades à disposição, seja aquele que mais se renova ou que mais potencializa seus achados, cujo cerne é a sempre complexa relação, efetivamente participante do público.
De modo esquemático, parte do teatro popular, herdeiro da farsa medieval e da commedia dell’arte (expulso da França, no século 17) fora substituído, nos palácios, pelo teatro literário. Entretanto, durante o processo revolucionário (Revolução Francesa), certos tipos de espetáculos populares receberam novo impulso e, ao se desenvolverem, permitiram o acesso a grande maioria da população. Dessa forma, apareceram teatros para o mais puro entretenimento, conhecidos então como teatro de boulevard (Gymnase, Ambigu-Comique, Gaieté, Variétés e Nouveautés). Nesses espaços, as peças iam ao encontro do padrão de gosto da massa, caracterizada por uma produção artística dominada por espetáculos fáceis e agradáveis. O novo público burguês lotava as casas que apresentavam espetáculos populares, mas, ao contrário, os teatros consagrados aos textos clássicos (como Odéon e a Comédie Française) apresentavam seus espetáculos para casas vazias. Junte-se a isso também o fato de a farsa, a comédia musical e o melodrama serem considerados gêneros menores, por parte dos governos, e por isso não foram censurados. Assim, ao novo público formado, o que parecia interessar era, fundamentalmente a distração e o riso: das situações e das personagens, que muitas vezes faziam alusões às personalidades no poder e àquelas destacadas na vida social.
Arnold Hauser (s/d) afirma que durante o período que vai do Primeiro Império (passando pela Restauração) até a Monarquia de Julho, os repertórios dos teatros de Paris estavam divididos entre: Comédia em cinco atos e em versos (gênero literário apresentado pela Comédie Française); Comédia de costumes em prosa (herdeira do drama doméstico); Drama em prosa (drama sentimental); Comédia histórica (que já não trata de personagens históricas, mas reapresenta-as como revistas de cenas espetaculares); Vaudeville, comédia musicada ou mais precisamente comédia entremeada com canções, gênero que antecede o aparecimento da burleta e da opereta (nesta categoria estão autores como Scribe); Melodrama, forma mista que mistura diferentes categorias dos gêneros apresentados acima.
As duas formas de maior interesse do público, neste momento histórico, foram o melodrama e o vaudeville, na medida em que irão corresponder a gêneros que efetuaram a transição entre o teatro clássico e o romântico e cujo objetivo caracteriza-se na distração, buscando reduzir os sentimentos e as fraquezas.
De qualquer forma, mesmo sem teorias e tratados a seu respeito, o teatro de rua tem se renovado. Se hoje teorias da atoralidade; do “artista total”, referindo-se ao intérprete que interpreta, canta, dança, narra… é moda; artistas de rua, pelas mais diferenciadas necessidades, tiveram de proceder dessa forma. Afinal, para ganhar o público, era preciso cativá-lo, se possível por todos os mais diferenciados sentidos. A rua exige essa expansão e pluralidade.
Dentre os momentos em que a sofisticação, na condição de filigrana, teve de atingir sua instância máxima, em relação à interpretação (priorizando gesto, fala, canto, dança, narração) e ao espetáculo (desenho de cena, invenções, traquitanas ressignificadas, cumplicidade com o público), antes do período em que os gêneros acima foram desenvolvidos, pode-se evocar o chamado teatro de feira francês, sobretudo aquele praticado no século 18.
Assim como a commedia dell’arte do século XVI correspondeu a uma síntese das tradições cômico-populares desde a Antiguidade clássica grega, o teatro de feira francês abrigou expedientes da commedia dell’arte, do vaudeville (do século 17) e de todas as outras formas em uso no século de seu auge (18) para conseguir existir e sobreviver. De certa forma, por injunções que serão apresentadas, a forma teve de ser rigorosamente tática; trata-se, portanto, de um teatro tático e popular.
Depois do “despotismo pouco esclarecido” do cardeal Richelieu (1624 até 1642 como conselheiro de Luís 13), por meio de decreto, Luís 14 cria a Comédie Française, em 24 de agosto de 1680. Por ingerência direta do Estado, certo tipo de teatro – afinado aos interesses da dinastia dos luíses -, o Estado adota um companhia teatral para, também e sobretudo, proteger obras clássicas que louvassem as glórias da nobreza, seus valores e territórios, em todos os sentidos. Como em qualquer outro contexto e lugar, evidentemente, talento e favoritismo se reuniram para selecionar os profissionais que comporiam a companhia estatal. Portanto, se o critério “de seleção” fundamenta-se em favoritismos obtusos, evidentemente, toda vez que se sentir ameaçado, o bichinho protegido tende a ronronar aos pés de seu padrinho para – ao se sentir protegido – rosnar ante a ameaça de seus concorrentes…
No século 17 a produção teatral era apresentada dentro dos palácios e fora desses, em todos os espaços públicos imaginados e possíveis. Afinal, o artista precisava de moedas para sobreviver: viessem elas dos poderosos ou dos desprotegidos. Como “os desprotegidos” precisavam, de fato, seduzir pela beleza, capacidade de sedução, pela graça, pelos expedientes efetivos de participação…, evidentemente, por questão tática e de sobrevivência, os procedimentos e repertório dos populares sempre foram mais amplos e mais sofisticados (não era ou continua não sendo possível lançar mão de expedientes mais realistas ou entrópicos com relação à criação de cenas). Pelo fato de estarem mergulhados na cultura oral, a gestualidade amplificada e alegórica nas apresentações dos artistas de rua, de certa forma – e de modo a agradar na imediaticidade do gesto, explicita a universalidade e o prazer do público em acompanhar o teatro de rua: mesmo que se perdessem as palavras, lá estava o corpo a traduzir o (inter)dito. Desse modo, ao lançar mão de propostas mais universais e amplas pode, também, explicar a suposta sofisticação do teatro de rua: era preciso atrair e agradar às gentes de todas as idades, com necessidades diferenciadas; gente que não sai de casa para ir ao teatro e que, se apanhada (as gentes) a cena tem de ser maior do que a inquietude permanente da cidade. Enfim, certo tipo de briga de Davi contra Golias.
Nesse tipo de contenda permanente, por entre o comércio das feiras, havia companhias de artistas dedicados ao teatro de rua, e que, evidentemente, não gozavam de nenhum tipo de subvenção, e dependiam exclusivamente da venda de ingressos. Algumas dessas companhias apresentavam-se em duas famosas feiras de Paris, a de Saint-Germain e a de Saint-Laurent. A primeira dela ficava montada do início do mês de fevereiro à Páscoa (fim de março ou começo de abril), a de Saint-Laurent ficava montada durante o verão europeu (de junho a outubro), em ambas apresentavam-se os mais diferenciados tipos de artistas, com atrações em teatro, mímica, pantomima, bonecos; números de dança e de canto (sozinhos ou articulados); prestidigitação; acrobacias e malabarismos; diversas modalidades de charlatanismo. As trupes de artistas populares, em suas barracas, e de modos diferenciados a outros tipos de organização, apresentavam, basicamente, uma mesma peça, que era repetida até não haver mais ninguém a assisti-las. Exatamente por essa contingência, os donos ou principais responsáveis pelas companhias realizavam pesquisas quanto ao gosto popular e investiam, exatamente, naquilo que, em princípio, tinham certeza, iria agradar ao público que ia às feiras com os mais diferenciados interesses. Por questões de sobrevivência, era preciso investir – posto que fora do mercado das mercadorias legitimantes do corpo alimentado – no mercado das ilusões, dos arrebatamentos, da alegria, das novidades, da inversão social… Cultura da derrisão e da inversão da estrutura social, como tão bem já comentou Mikhail Bakhitin (1993).
As duas primeiras categorias, citadas anteriormente: a de atores e atrizes e a de cantoras/es tiveram, além das imposições mais características de defrontarem-se, nas aludidas feiras com os artistas da Comédie Française e aqueles da L’Opera (que detinham a concessão exclusiva e queriam o monopólio da palavra e do canto em Paris, respectivamente). Pelas contingências persecutórias, os artistas de feira foram impedidos, em determinados momentos de suas trajetórias, e pelos mais diferenciados motivos – tantos pelos artistas da primeira quanto da segunda instituição, amparadas pelo Estado monárquico -, de dialogar e de cantar em seus espetáculos. Por conta de atos exarados pelo rei ou por seus protegidos, pelos representantes da Igreja, por sujeitos “de poder” que se sentissem agredidos por determinada cena… Enfim, os motivos para a proibição iam da (ideológica) antipatia, à pura e doentia inveja, passando pela crença segundo a qual, em sendo melhores (etimologia da palavra aristós), os detentores do poder (ou seu afilhados) teriam direito natural à exclusividade quanto à utilização de determinadas formas estéticas, ao uso de textos e músicas específicas. Em razão do uso de todo tipo de estratagema proibitório, no sentido de impedir a apresentação de seus espetáculos, os artistas do teatro de feira tiveram de inventar todo tipo de expediente e tática para enfrentar as proibições e conseguir sobreviver de seu ofício.
Quanto à proibição do uso da fala, do diálogo ou de recitar poemas (com sentido apreensível), diversos estratagemas (que confluiram para ampliar ainda mais o trabalho com a pantomima) foram criados; dentre eles, podem ser citados os “monólogos de feira”: cenas inteiras sem fala; cenas em que se apresentava o texto da personagem e a réplica sendo repetida, de modo indireto, pela mesma personagem ou por algum ator “disfarçado” na área do público; fala e por ator/atriz e réplica escrita (na forma de rolos, de cartazes ou por crianças vestidas de anjos…); quanto às canções, elas apareciam também escritas – muitas vezes na condição de pequenos panfletos -, tocadas por integrantes do grupo no palco ou na área de público, sendo, normalmente, cantadas pelo público (afinal, esse tipo de manifestação seria mais difícil de coibir). A “regência” do canto poderia estar no palco, na área do público ou, ainda, tendo o canto “puxado” por ator/atriz muito fora da cena. Em razão de muitas vezes, sgundo a tradição popular, o feitiço virar contra o feiticeiro, o teatro de feira, diferentemete do canonizado pela Comédie Française, era vivo, dinamizava-se permanentemente e constituía-se em experimento estético-social absolutamente participativo. Então, as gentes de dinheiro iam à Comédie e, também, às feiras.
Segundo Robson Camargo Corrêa, concernente aos processos de driblagem da autoridade constituída:
Se os elencos reais subvencionados caminhavam para uma forma estruturada e totalmente regulada de manifestação, o teatro das feiras, por outro lado, iria gerar um modo mutante mais de acordo com as leis de “livre comércio”, o que permitiu sua acomodação a diversos tipos de intervenção, um teatro em devir.
[…]. O elemento visual desses espetáculos era dominado pelo pitoresco da decoração, dos truques cênicos e pela mise-en-scène, no qual a alusão ao escatológico, em todos os seus sentidos, era uma constante. Este tipo de espetáculo originado nas feiras, […] não buscava uma forma pura; ao contrário, propunha a mistura de gêneros ou um gênero das misturas, de épocas, de tons, com audácia de linguagem, transgressão calculada, utilizando a irreverência cotidiana, os lazzi, as acrobacias, o jogo de palavras, a sátira, os sarcasmos, as ironias e piadas a granel.
Nesse tipo de teatro, a assimilação explícita das estruturas dos outros gêneros existentes, como as músicas repetidas de operetas ou das comédias musicais, ou da paródia contínua, traz não apenas a introdução dessas estruturas ou dos elementos destes outros estilos dramáticos, mas também implicitamente uma crítica aos limites preestabelecidos dos gêneros ou formas teatrais contemporâneos. Assim, instala-se uma relação dinâmica entre o enunciado citado e o citante, o que torna esta operação de diálogo com outros textos parte fundamental da pantomima dialogada. O teatro da pantomima, mesmo emudecido ou gestual, estará sempre em diálogo. Nessa forma, o que está em questão não é a citação, mas a glosa, o discurso paralelo, a forma na qual ela é realizada, sujeito e objeto do discurso cênico; um gênero que não se estabelece como tal, pois o que tem em comum é um procedimento matriz e não características particulares de estilo, que podem mesmo ser contraditórias entre uma peça e outra (2012, p.71-2).
No processo de luta entre os artistas, e múltiplas foram as contendas e lutas a enfrentadas contra todo tipo de detrator ou agressor, os artistas populares sempre tiveram de criar todo tipo de estratagema tático para sobreviver, lutar e resistir. Até hoje, não é raro assistir a muitas das invenções criadas e apresentadas por artistas das cenas da rua (tendo em vista a dinâmica nervosa da cidade e dos constantes “atravessamentos” à obra teatral) aparecerem no chamado teatro de caixa. Evidentemente, o criador do teatro em caixa passa a ser saudado como genial, inventivo… Pelo fato de haver raros documentos sobre a prática nas ruas, dificilmente se sabe a “origem” quanto aos expedientes geniais criados. Mesmo não saudando a forma teatral “barraqueira”, pela importância conferida aos documentos, os franceses conseguiram registrar muitas das criações dos artistas de feira. Muitas dessas criações influenciaram diversos criadores da cena teatral, ao longo da história. Os poucos expedientes citados anteriormente, ao que hoje se chama de dramaturgia da cena, ajudaram a epicizar, no concernente à teatralidade, sobremaneira a encenação contemporânea.
Bertolt Brecht (1898-1956), um dos mais geniais e originais criadores teatrais do século 20, em inúmeros de seus escritos reconheceu a influência da gente do teatro de feira. Textos escritos nos corpos, no chão, nas superfícies lisas; monologias próximas ao confessional; a busca pelas paisagens inusitadas e pelas cenas fantásticas; as falas com assovios, com instrumentos, com bonecos (tomando a forma e a vez dos humanos); na dinâmica da ausência documental sobre o teatro de rua; “traduções” e interpretações de supostos hieróglifos, leituras de bolas de cristal; textos corais polifônicos, partilhados com o público; a mistura de todos os gêneros e estilos e dos aparentemente díspares recursos foram usados para contar e apresentar histórias no aqui-agora do fenômeno teatral; fogos de artifício, brinquedos, bonecos, miniaturas… tudo já foi experimentado na cena dos populares e têm chegado, contemporaneamente ao teatro de caixa… Muito (e muito mais) disso, desses tipos de estratagemas foram experimentados pelos populares e pelos “feirantes do teatro”.
Para concluir temporariamente, legado se amplia e se diversifica. Sobre a influência do teatro de feira, Robson Corrêa Camargo assim se manifesta:
O melodrama do século 19, e depois o drama do século 20, retira do teatro realizado nas feiras parisinas nos séculos 17 e 18, elementos de sua elaborada técnica de interpretação do ator, a composição de sua gestualidade e, sobretudo, o procedimento de construção de seu espetáculo. Reelaborando esta prática teatral, estabelece no palco a relação explícita de cumplicidade com a plateia e, como parte central desse processo, o uso deliberado e sem cerimônia de todos os estilos e a reelaboração permanente em nova chave, era um teatro em que não se impunha fronteiras ou fidelidades estilísticas, ao contrário, buscava-se rompê-las, renová-las, ocupá-las e, talvez, subtraí-las (2012, p.66).
Porque estamos em um tempo de retomada e de luta, porque muitos antes de nós insistiram na necessidade de que “é preciso cantar e acordar a cidade”, porque é preciso estar pelos salões para arrebentá-los por dentro, aqui estamos: montando nossas barracas, apresentando nossos pregões e tomando pela mão outras mãos de galos que insistem no canto de outros tantos galos…
Cocóricóó: olhaí! olhaí!
*Alexandre Mate é professor do Instituto de Artes da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e pesquisador de teatro. Ele escreve no blog sempre no dia 1º.
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