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Crítica: ZAP 18 faz 11 anos e arrasta rio de coragem

Grupo ZAP 18 volta com espetáculo de 2006 baseado em Brecht e Brasil contemporâneo

Por Leonardo Kildare Louback, em Belo Horizonte
Especial para o Atores & Bastidores*

Em julho último, a companhia mineira ZAP 18, Zona de Arte da Periferia, completou 11 anos de atividades, trazendo aos palcos, como comemoração, a extrema atualidade de Brecht, na adaptação Esta Noite Mãe Coragem, sete anos após sua estreia. Não haveria momento mais propício para se falar de justiça e violência.

Encabeçada pela atriz e diretora Cida Falabella, a montagem, que estreou em 2006, propõe uma mescla, quase fusão, entre a Mãe Coragem de Brecht, que perdeu seus filhos durante a guerra e a mãe do morro, que também vê seus filhos tragados pelo crime de um morro qualquer do Brasil, onde, entre um gole e outro no Bar da Rose, filhos são assassinados.

Ao longo dos futuros anos em que a trama se desenvolve, o morro vai sendo separado da “sociedade de bem”, tendo seus moradores isolados por um muro de sacos de areia, em uma alusão claríssima à repressão e ao cerceamento da população menos favorecida, “perigosa”, “bandida” e, porque não dizer, “vândala”.

Samba melancólico

A mãe coragem dessa noite na periferia de Belo horizonte entoa sambas melancólicos ao vivo, avivando um púbico que lotava o galpão sede da ZAP, localizada à Rua João Donada (do nada?), n. 18, do bairro Serrano, longe, muito longe dos lugares tradicionalmente privilegiados da arte na capital mineira.

Há um poder tão avassalador no trabalho do grupo, que a plateia se sente por vezes ela mesma acuada, sem saber quem está isolando quem, quem está negando ser quem.

Cida Falabella não só dirige, quanto rege do alto do morro seus atores/personagens. Ela, verdadeira mãe coragem de uma arte por essência periférica e exilada das classes privilegiadas, guia seus meninos e meninas (um dos atores entrou em cena no espetáculo quando tinha apenas 13 anos!) pelas mazelas de um Brasil carcomido por seu corpo sociopolítico, depravado pela falta de humanidade dos que nos deveriam cuidar, dos que renegam seu povo em nome da sede de poder de tão poucos.

Elisa Santana e Antônia Claret, duas das mais importantes artistas do teatro mineiro, dividem o peso da carroça dessa Mãe Cheia de Coragem, que negocia seus próprios filhos em um cenário por demais hostil. Junto delas, entoando seus raps e canções populares, um grande elenco dá força extrema na defesa dessa saga mais que contemporânea. Difícil ter escancarada diante de nossos olhos, por vezes só lacrimejantes, por outras encharcados, nossa própria verdade, nossa brasileira condição de povo rechaçado pelo poder de uma elite desprovida de umidade.

Brecht com ZAP

Na mistura de Brecht com a dramaturgia de Antônio Hildebrando, somada aos emocionantes discursos pessoais de cada ator ao longo da encenação, o aparente distanciamento de Brecht se torna rente, muito rente. O próprio galpão da companhia  vira, ele todo, esse lugar de interseção entre Brecht e a ZAP, entre a Alemanha historicamente devastada pela guerra dos trinta anos e tantas outras e os Brasis de diários holocaustos.

Ao público, ao final, é dada a oportunidade de falar, de invadir o espaço sacralizado desse Brecht que sobe o morro. Entre uma fala e outra do público, uma mulher jovem, muito jovem, relatou a morte de duas crianças que foram queimadas na ocupação popular Dandara, de Belo Horizonte. Com fúria emocionada, ela disse do cheiro de carne queimada que seu corpo não podia apagar. Mas nossos governantes não se incomodam com cheiro de povo, seja em chamas ou não.

Um grito no peito

Sete anos após sua estreia a Mãe Coragem parece ter encontrado em outros peitos um endosso para seu grito. Um movimento impressionante leva o Brasil às ruas e uma voz de “basta!” se alastrou por nossa falsa prosperidade e o que parecia, enfim, ser o grande momento de coragem, se torno rapidamente um espaço de opressão, seja da polícia, seja da mesma elite que nunca se interessou por grito nenhum.

Armada com uma mídia bandida, tratou de determinar quem tem ou não direito de se manifestar e a palavra “vândalo” surgiu muito oportuna para por o povo mais uma vez em um lugar de submissão ao Estado e, pior, de imensa confusão ideológica.

A única frase que tenho de coração do Herr Bertold Brecht é mais ou menos assim: “Do rio que tudo arrasta se diz violento. Não se dizem violentas, porém, as margens que o oprimem.” Há que se inteirar mais sobre margens e rios antes de se discutir o momento atual brasileiro. Presenciar Esta Noite Mãe Coragem pode ser um bom começo.

Parabéns, ZAP 18! Que nenhuma margem opressora tenha força para reprimir o rio que vocês carregam. Porque em um país em que a palavra laico é desconhecida e milhões de pessoas (muito mais que em dias de protestos) vão às ruas saudar um líder religioso, o caminho rumo à enchente popular é longo, muito longo, e cheio de percalços.

*Leonardo Kildare Louback é ator, dramaturgo, tradutor e professor de alemão. Ele escreveu esta crítica a convite do blog.

Esta Noite Mãe Coragem
Avaliação: Muito bom

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