Crítica: Estrada do Sul prende público em engarrafamento e renova o teatro de rua
Por Miguel Arcanjo Prado
O público que chega à charmosa Vila Maria Zélia, na zona leste de São Paulo, para ver o espetáculo Estrada do Sul, já começa a ficar excitado assim que compra o ingresso e recebe uma senha numérica.
Quem vai acompanhado recebe número diferente do parceiro, mas não é preciso desespero. No fim da peça todo mundo se encontra, feliz de ter visto um espetáculo que renova o teatro de rua com inteligência e poesia. Porque Estrada do Sul é um dos melhores espetáculos do ano.
Após pequena espera, cada um é chamado a ocupar o carro correspondente, onde encontrará outros espectadores buscando também seu assento no automóvel.
Tarda um pouco até que o personagem condutor chega e a peça, inspirada no conto A Autoestrada do Sul, do argentino Julio Cortázar, começa. Tal espera gera uma necessidade de descoberta do outro em alguns.
A peça é única e incomparável para cada espectador. Impossível de se repetir. Exclusiva, feita da poesia do presente – tão intrínseca ao teatro –; este é o grande charme da montagem do Grupo XIX com direção e dramaturgia do diretor italiano Pietro Floridia, da Compagnia del Teatro dell’Argine.
O mote do enredo é um engarrafamento sem fim que prende todos os carros na estrada. Diante do imprevisto, é preciso abrir as portas e janelas e conviver com os vizinhos naquele inferno de espera sem expectativa de movimento.
Como não há sinal de liberação do trânsito, o tempo passa e uma espécie de nova sociedade começa a ser formada, com discussões pungentes sobre o comportamento humano diante de situações extremas vividas em grupo.
É como se todos fossem transportados a um reality show. Solidariedade, egoísmo, poder, opressão, amor, fuga da realidade, enfrentamento, desespero, derrotas e vitórias. Tantas coisas se passam e, sempre, o espectador está no centro do acontecimento, é parte dele, participa, opina, conversa, questiona e até consola os personagens. Afinal, todos estão ali no mesmo buraco, quer dizer, no mesmo engarrafamento.
O elenco está afinado, num registro simples e delicado, sem aquele exagero muitas vezes comum no teatro de rua. Alguns chegam a se sobressair em determinados momentos, dependendo do ângulo e do que se vê. Por isso, não cabe aqui fazer destaques individuais: todos os atores-criadores estão incrivelmente presentes e críveis, fazendo com que aquela fantasia seja tátil e real.
Merecem parabéns os atores-criadores Andréia Paiva, Daniel Viana, Daniela Scarpari, Evelyn Klein, Fernanda Brandao, Gabi Costa, Guilherme Rodio, Jonatã Puente, Juliana Sanches, Ligia Yamaguti, Mara Helleno, Mari Nogueira, Maria Carolina Dressler, Mariza Junqueira, Paulo Celestino, Paulo Maeda, Priscila Jácomo, Rafael Procópio, Rodolfo Amorim, Ronaldo Serruya, Tatiana Caltabiano, Tatiana Ribeiro e Victor Lucena.
Também cabe elogio à atenta coordenação técnica de Michel Fogaça, à envolvente direção de arte de Felipe Cruz e à trabalhosa produção executiva de Vanessa Candela. Porque não deve ser nada fácil dar conta de um engarrafamento com 18 carros repletos de personagens e público.
Criação do Grupo XIX de Teatro, Pietro Floridia e Daniela Scarpari, Estrada do Sul dialoga profundamente com a realidade e a dureza da cidade de São Paulo, mergulhada no trânsito caótico nosso de cada dia, que gera estresse e distanciamento do outro.
E, como excelente provocação artística, mostra que há vida detrás das janelas de nossos automóveis imóveis. Por mais que tentemos recriá-la entulhando os carros de novidades tecnológicas para entreter nosso tédio sem fim, a vida real do lado de fora é sempre mais interessante, mesmo que mais perigosa.
Afinal, viver é sempre um risco, é movimento.
Estrada do Sul
Avaliação: Muito bom
Quando: Sábado, 19h e 21h (sessão extra); domingo, 19h. 100 min. Até 29/9/2013
Onde: Armazém XIX (r. Mario Costa, 13, Vila Maria Zélia (bairro fechado, entrada fica no fim da rua Cachoeira, a duas quadras da esquina com rua Catumbi, no Catumbi, zona leste, São Paulo, tel. 0/xx/11 2081-4647)
Quanto: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia-entrada)
Classificação etária: 14 anos
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Achei o conceito da peça genial.