É preciso muita força masculina para que homens consigam construir personagens femininas no teatro
Por Alexandre Mate*
Especial para o Atores & Bastidores
Na tradição do teatro popular, homens e mulheres sempre estiveram lado a lado no sentido da construção e criação do espetáculo teatral. Diferentemente do modo ocorrido, e desde a antiguidade clássica grega, as mulheres foram impedidas de se apresentarem como atrizes.
No teatro erudito (aquele bancado e protegido pelo Estado ou pelos endinheirados), as mulheres vão para a cena somente no século 17. Até esse período, portanto, na produção teatral não popular, todas as personagens femininas foram apresentadas por homens.
De certa forma, é bastante comum, e também em nossos dias, falar em “guerra conjugal”. Homens e mulheres andam juntos na vida, guerreando em boa parte das vezes, mas se acertando, reavaliando suas trajetórias comuns e partilhadas. Homens e mulheres têm características pessoais e singulares, mas têm, também, aspectos que são mais difíceis de imitar.
A linguagem teatral se fundamenta no espetáculo, mas, de diferentes formas, se organiza juntando, nos processos de interpretação: a imitação, que ocorre por meio de ações, e a narração. Intérpretes, dependendo do gênero teatral, buscam imitar por meio do corpo e dos gestos e, também, da fala. A criação e apresentação da personagem ocorre, então, por meio da junção de apreensões, intuições, suspeitas, observação de comportamentos sociais, idealizações (boas e ruins) sobre sujeitos existentes.
Sabe-se, primeiro por proibição, depois por identificação e, também, por variadas necessidades, que muitos atores interpretaram e interpretam mulheres. Muito difícil apresentar, a não ser repetindo a impressão de alguém, como determinados homens apresentavam as personagens femininas ao longo da história.
Há um livro muito interessante, chamado A Máscara de Apolo, em que a autora Mary Renault apresenta algumas evidências históricas de como os atores se comportavam na antiguidade clássica grega. Nesta obra, o ator Niquérato apresenta uma série de dificuldades sobre a arte de representação e as diferenças na “composição” de suas personagens, fossem masculinas ou femininas.
Alguns visitantes estrangeiros em suas andanças pelo Brasil, durante o período colonial relatam suas impressões e preconceitos sobre, por exemplo, como os negros (e não havia atores brancos) apresentavam-se como Julieta. No filme britânico Shakespeare Apaixonado, de 1998, são mostradas algumas dificuldades para a personagem Viola De Lesseps apresentar-se como Julieta.
Na ópera tradicional chinesa, conhecida como “Ópera de Pequim” (atualmente, Ópera de Beijing”), até hoje as mulheres não entram; dentre outras obras, acerca dos modos de preparação dos atores para fazerem os papéis femininos na tradição mencionada, o filme chinês Adeus, Minha Concubina, de 1993, apresenta uma emocionante história de transformação de um menino em personagem feminina.
Enfim, vários são os relatos na história sobre proibições e modos como os atores apresentaram as personagens femininas.
Na tradição popular, porque os modos de criação sempre contam com a cumplicidade do público, ao se passar por mulher, o objetivo do travestido é enganar alguém, normalmente um opressor. Em tal tradição, o ator não imita de modo ilusionista a mulher, ele apenas se veste de mulher.
Portanto, o homem não quer ser mulher, ele não pretende vender uma “imagem de”. Não propriamente ligado a essa tradição, mas bastante atento a ela, Madame Satã (João Francisco dos Santos), apresentado como famoso transformista do Rio de Janeiro, sempre deixou absolutamente claro o quanto era necessário ser macho para ser homossexual no Brasil.
De outra forma, talvez, ao fazer um papel, “sexualmente feminino”, Madame Satã evidenciava o homem que era: não enganava ninguém. Tal aproximação faz-se necessária porque muitos são os homens que não perdem sua condição de homens, mesmo que suas escolhas não correspondam aos papéis, impostos também moralmente.
Voltando ao teatro, houve atores que se apresentaram em papéis femininos na história do teatro paulistano, de maneira antológica: dignizando as mulheres e sem afetações idealizadas (e na totalidade absoluta das vezes) sobre o que seria a mulher. Tive a oportunidade de assistir Roberto Cordovani, na década de 1980, apresentando-se como Greta Garbo em Olhares de Perfil e em Amar, Verbo Intransitivo, de modo impecável; Elias Andreato, em 1986, criando uma professora de inglês em Hello, boy!.
Recentemente, na pele da excepcional atriz Miryam Muniz, sem quaisquer afetações, sem figurinos, jogos de luzes, cenários…, Cássio Scapin apresenta-se de modo surpreendente no Eu Não Dava Praquilo.
Scapin incorpora em sua composição características absolutamente singulares da atriz, sobretudo modo de falar; modos de olhar, de expressão facial e gestos (principalmente ao fumar). O ator apresenta a atriz, de modo algo semelhante àquele apresentado por Marcelo Médici, em Cada um com Seus Pobrema. A diferença entre as interpretações reside no fato de Médici investir mais no tratamento cômico. Segundo Médici, em diversas ocasiões, a própria atriz ligava para ele para “ouvir-se”.
Ainda que de modo mais grotesco, porque a estética assim o exigia, na montagem de As Três Velhas, dirigida por Maria Alice Vergueiro, Luciano Chirolli, em determinados momentos do espetáculo tinha uma delicadeza surpreendente. Em Orquestra de Senhoritas, de 1974, Paulo Goulart apresentava uma austera maestrina (Madame Hortense), ainda que em chave de comicidade e grotesco, o ator teve um trabalho surpreendente; mesmo vestido exageradamente, podia-se divisar uma humanidade muito interessante na composição e criação da personagem.
Tentei passear por alguns momentos da história do teatro, com ênfase à linguagem produzida na cidade de São Paulo. Muito tem acontecido e sido apresentado na Sampa desvairada, se Sylvia von Harden pintada por Otto Dix, em imagem apresentada no início deste texto confunde e delicia, mesmo sem confundir, mas deliciando ao extremo, pensei em finalizar este sucinto texto com a representação de cena antológica de Oscarito e Grande Otelo, em Carnaval do fogo, de 1949 ou Oscarito e Eva Todor em Os dois ladrões, de 1960.
Nos dois filmes, e vale a pena assisti-los na íntegra, têm-se excelentes atores apresentando mulheres. Sabe-se, todo o tempo que são homens, mesmo no segundo caso, na cena antológica de espelho. Oscarito, nesta cena, veste-se e comporta-se como a personagem apresentada por Eva Todor, mas pode-se perceber, ator e atriz revertendo o comando.
*Alexandre Mate é professor do Instituto de Artes da Unesp (Universidade Estadual Paulista), pesquisador de teatro e integra o júri do Prêmio Shell de Teatro. Ele escreve no blog sempre no dia 1º.
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