Coluna do Mate — Uma rápida viagem por entre a produção teatral paulistana do século XVI ao XVIII
Por ALEXANDRE MATE*
Especial para o Atores & Bastidores
“Se a dona se banhou
Eu não estava lá
Por Deus Nosso Senhor
Eu não olhei Sinhá
[…]
Por que talhar meu corpo
Eu não olhei Sinhá
Para que que vosmincê
Meus olhos vai furar
Eu choro em iorubá
Mas oro por Jesus
Para que que vassuncê
Me tira a luz.”
Chico Buarque de Hollanda e João Bosco (Sinhá).
Alguns versos da belíssima letra de Chico Buarque de Hollanda, na música Sinhá, podem demonstrar, de maneira exemplar, a luta dos artistas do teatro para conseguirem, ao longo da história, apresentar seu ofício. No Brasil, de modo idêntico ao que aconteceu, sobretudo com a cultura popular no mundo, a produção teatral, dos poucos documentos e referências de que se dispõe, em longo período histórico, teve de enfrentar todo tipo de proibição e perseguição.
De modo rigorosamente sucinto, o teatro brasileiro de influências europeias, porque os ritos das diversas tribos locais jamais foram considerados, começa a ser praticado no século XVI. Em tese, as versões históricas informam que foi o padre jesuíta José de Anchieta quem escreveu e “dirigiu” os primeiros espetáculos em certas áreas costeiras brasileiras. Em São Vicente e, posteriormente, no planalto paulista, sobretudo onde hoje fica ao Pátio do Colégio, o padre apresentou suas obras: o gênero teatral conhecido por auto, muitos deles falados em português, espanhol, expressões e frase em latim e línguas nativas. Nessa mistura, os índios rebeldes, assim como os demônios e as personagens do mal, sempre falavam em sua língua de origem. Claro, havia nessa proposta uma tentativa de os índios abrirem mão de sua cultura, religião e costumes para abraçar a dos portugueses.
Ao se consultar os poucos livros à disposição da produção teatral brasileira, aparece em quase todos eles, a ideia segundo a qual nos séculos XVII e XVIII, correspondendo, respectivamente, aos ciclos da cana de açúcar e do ouro, a linguagem teatral não teria se desenvolvido. Pelos relatos de alguns viajantes, tem-se acesso a informações de que as práticas teatrais eram apresentadas por negros, principalmente forros, porque o teatro, desde o período da Idade Média, fora considerado pelos representantes da igreja, uma prática do mal.
Por que os representantes da igreja assim se manifestaram sobre o teatro?
A resposta não é tão complicada. Houve esse julgamento, porque as práticas teatrais, que vieram da tradição romana (da Antiguidade), eram populares e irreverentes e apresentavam os valores de uma sociedade politeísta (com vários deuses e não apenas um como a igreja tentava impor).
Voltando ao Brasil, durante os séculos XVII e XVIII, o Estado português não incentivou a linguagem teatral, como fizera no século XVI, e, ao contrário disso, não via com bons olhos esse tipo de prática, sobretudo em razão de Portugal ser um país muito religioso. De qualquer modo, os negros “roubados” e trazidos à força ao Brasil, serviam também aos seus perversos senhores para diverti-los em ocasiões especiais. Assim, vez ou outra, principalmente em datas consagradas e normalmente religiosas, os negros apresentavam cenas de obras clássicas do teatro. Oscarito e Grande Otelo, ao apresentar um trecho, de modo bastante farsesco, de Romeu e Julieta de Shakespeare, no filme de 1949, dirigido por Watson Macedo: Carnaval no Fogo, pode se caracterizarem demonstração do procedimento. Evidentemente, Oscarito e Grande Otelo eram comediantes maravilhosos e com amplo domínio da linguagem da representação, mas a imagem, entretanto, com dois afrodescendentes, pode aproximar-se bastante do que poderia ter sido um tipo de representação nos séculos mencionados.
Apesar de o Brasil ser colônia de Portugal, e de as autoridades portuguesas dificultarem ou proibirem as práticas teatrais, o grande autor de comédias era conhecido com o nome de Antônio José da Silva. O Judeu, como também foi conhecido Antônio José da Silva, nasceu no Rio de Janeiro, em 1705; e, em 1739, foi queimado vivo, em auto de fé (fogueiras públicas em que se queimaram muita gente), condenado pelos representantes da igreja por práticas judaístas. O Judeu criou obras muito interessantes, dentre as quaisse pode indicar As Guerras do Alecrim e da Manjerona. Para conhecer um pouco da vida do autor, há um filme muito interessante, de Tom Job Azulay, chamado O Judeu (de 1995). Ainda no século XVII foram construídos os primeiros teatros em várias cidades do Brasil, chamadas de Casas da Ópera.
As Casas de Ópera não foram construídas para incentivar a produção nacional, mas, principalmente para receber as companhias estrangeiras em visita pelo Brasil. A Casa de Ópera de São Paulo, já demolida, ficava exatamente atrás do prédio onde hoje se encontra a Caixa Econômica Federal, na Praça da Sé. De todos esses teatros, o único ainda inteiro, em todo o Brasil, é a Casa da Ópera de Ouro Preto (1770), em Minas Gerais. Apesar de ser uma construção relativamente pequena, é um riquíssimo patrimônio teatral e arquitetônico brasileiro. A Casa de Ópera do Rio de Janeiro, durante certo período de tempo, foi administrada pelo padre Ventura, que teria dirigido muitas obras no espaço. Infelizmente, e como costumava acontecer, o teatro pegou fogo, uma segunda vez, quando se apresentava a peça Os Encantos de Medéia, de Antônio José da Silva. Depois disso, a casa não foi mais reconstruída.
A partir deste mês e nos próximos, a ideia é apresentar alguns momentos, de modo panorâmico, do teatro no Brasil, com ênfase ao praticado em São Paulo. Desse modo, no próximo mês pretende-se abordar a produção teatral desenvolvida no século XIX; e, nos próximos meses, a ênfase, em diversos aspectos, estará centrada na produção do século XX. Para finalizar o panorama, o século XXI será destacado no segundo semestre.
Como sugestão, das obras em cartaz (e deverá voltar brevemente a ser apresentado), recomendo o espetáculo Cantata para Um Bastidor de Utopias, apresentado pela Companhia do Tijolo. De modo absolutamente poético e político, a direção do espetáculo, a cargo de Rogério Tarifa e Rodrigo Mercadante, misturam no espetáculo, obra e contexto do grande poeta e dramaturgo espanhol Federico Garcia Lorca e acontecimentos ocorridos durante a ditadura civil-militar brasileira.
*Alexandre Mate é professor do Instituto de Artes da Unesp (Universidade Estadual Paulista), pesquisador de teatro e integra o júri do Prêmio Shell de Teatro. Ele escreve no blog sempre no dia 1º.
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Texto bem escrito que prova o preparo do pesquisador.