Domingou: Fernanda tem direito à incoerência
Por BRUNO MACHADO*
Especial para o Atores & Bastidores
Fotos de BOB SOUSA
Da indiferença ao constrangimento, o silêncio se tingiu de diversos tons, em meio a uma festa cujo clima lembrava um cândido baile de debutante. Foi na última terça-feira (18), durante a entrega do 26º Prêmio Shell.
Fernanda Azevedo, da Kiwi Cia. de Teatro, vencedora na categoria de melhor atriz por Morro Como Um País, subiu ao palco para agradecer a láurea e criticar o apoio da petrolífera à ditadura na Nigéria, na década de 1990.
Em meio ao complicado trânsito de bandejas de casquinhas de siri e bobós de camarão, entre as quais se distinguia um ou outro ator ou diretor, já meio enfadado, ou apenas trôpego, o eloquente silêncio, como uma onda, foi crescendo para desaguar verborrágico nas áridas praias do Facebook.
Houve quem considerasse o discurso de Fernanda hipócrita. Houve quem preferisse defendê-la. Outros optaram por ridicularizar o nome da companhia teatral da qual a atriz é integrante – onde já se viu grupo de teatro de esquerda com nome de kiwi, não é mesmo?
MIGUEL ARCANJO PRADO: Deixem a Fernanda Azevedo falar
KIL ABREU: Fernanda Azevedo desafiou a fantasia e apanhou
Incoerência é falha?
Cinquenta anos depois do golpe que catapultou os militares ao poder, as liberdades garantidas pela Constituição Federal permitiram que uma empresa que apoiou a ditadura, por meio de um júri, premiasse Fernanda por sua crítica às ditaduras e, de quebra, que ela aceitasse o reconhecimento. E ainda que todos, sem ressalvas, pudessem expor sua opinião sobre o caso. Cheia de nuances e questões pertinentes, a discussão, como quase todas as outras que rondam a esfera pública brasileira, degradou-se a uma pura e simples disputa entre direita e esquerda, Fla versus Flu, solteiros contra casados.
Exigiu-se coerência de Fernanda como se seu discurso fosse uma redação para um exame de vestibular, e não uma posição política, nunca isenta de contradições. Os críticos de Fernanda pareceram enxergar na coerência uma espécie de pedra angular que, ausente do seu discurso e do seu trabalho artístico, fez desabar um edifício de falácias e enganos. Dos seus escombros, restou apenas um vexaminoso arremedo de militância vazia. A coerência foi, então, alçada à condição de qualidade imprescindível, sem a qual o locutor perde qualquer legitimidade e direito de fala. A incoerência se tornou falha de caráter, demérito artístico e profissional imperdoável.
Leia entrevista exclusiva com Fernanda Azevedo
Veja a cobertura completa do Prêmio Shell de Teatro de SP
Opressor financia oprimido
Sobretudo, se exaltou a coerência como se a maioria das manifestações artísticas produzidas no Brasil não fossem movidas pelas contradições e incongruências típicas do capitalismo, sistema que permite, entre outras aberrações, que o opressor financie o oprimido. Sendo assim, a única ação coerente possível seria a recusa do prêmio, bem como de qualquer salário, patrocínio, prêmio ou edital. E não só por Fernanda, mas por toda a classe teatral que, de mãos dadas, iria viver de sonhos e artesanato vendido na praia.
Talvez coerente fosse, então, recusar os serviços de quase todas as empresas existentes no mercado, uma vez que, certamente, elas diretamente apoiaram ou estiveram ligadas a apoiadores da ditadura no Brasil, na Nigéria ou em qualquer outro lugar do mundo. Ler ou escrever jornais também estaria fora de cogitação. A maciça maioria dos veículos de comunicação apoiou a opressão militar e chegou até mesmo a endossar a censura que os calava. No paroxismo, seria necessário fazer uma investigação em profundidade acerca dos mais triviais serviços prestados ao cidadão coerente, como o inocente gás de cozinha. E mesmo esse seria rechaçado uma vez que a Ultragás chegou a emprestar seus carros para que agentes da opressão pudessem entregar, sem deixar rastro ou suspeita, cidadãos subversivos na porta do DOI-CODI.
MIGUEL ARCANJO PRADO: Deixem a Fernanda Azevedo falar
KIL ABREU: Fernanda Azevedo desafiou a fantasia e apanhou
Ditadura de contradições
A fala de Fernanda na festa de entrega do Shell expõe não só a ditadura de contradições sob a qual todos nós, artistas ou não, vivemos todos os dias. Cotidiano em que a incoerência é regra e não exceção. Evidencia também a fratura sobre a qual equilibra-se o teatro brasileiro, proibido de fazer qualquer reclamação sobre a esmola recebida.
O discurso de Fernanda contra as ditaduras, que trazem estabilidade e segurança ao florescimento do capital, acaba também por ser contra mecanismos não menos opressores, que controlam financeira e ideologicamente a produção de obras de arte e impossibilita os seus agentes de andarem com suas próprias pernas. Concluído um projeto, para dar início ao próximo, é preciso reiniciar do zero o velho processo de mendicância conhecido da classe artística.
A despeito do que dizem seus críticos, a crítica marxista de que Fernanda faz uso em seu discurso e em seu teatro não apregoa o franciscanismo. Afirma que as contradições e incoerências – a chamada dialética – são essenciais ao debate, ao surgimento do novo e da transformação social. Se a atriz vencedora do Shell foi contraditória ao receber o troféu ou não, é questão menor.
Toda a seara de questionamentos que o seu ato suscita já deixa clara a sua posição política e a coerência com o projeto artístico da sua companhia com nome de fruta exótica: o oprimido pode e até mesmo deve aceitar o dinheiro do opressor, e por meio dele, lutar pelos seus ideais, pela justiça social; pode até mesmo lutar contra o opressor. O capitalismo e a democracia, incoerentes por excelência, garantem esse direito. O capitalismo e a democracia asseguram à Fernanda Azevedo o direito à incoerência.
*Bruno Machado é jornalista formado pela ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo).
MIGUEL ARCANJO PRADO: Deixem a Fernanda Azevedo falar
KIL ABREU: Fernanda Azevedo desafiou a fantasia e apanhou
Leia entrevista exclusiva com Fernanda Azevedo
Veja a cobertura completa do Prêmio Shell de Teatro de SP
Curta nossa página no Facebook!
Leia também:
Fique por dentro do que rola no mundo teatral
Bruno está certíssimo ao dizer que o ato de Fernanda foi político. Foi. Eu diria que foi politicamente engajado. E nem acho que o ato dela foi incoerente, pelas razões que expus em comentário em “post” acima.
Que coisa chata! Direita e esquerda ja não existem mais….