Kiwi rebate críticas a Fernanda Azevedo e ironiza: “Nossas desculpas por não nos submetermos ao circuito chique do teatro paulistano”
Por MIGUEL ARCANJO PRADO
Foto de BOB SOUSA
A Kiwi Cia. de Teatro resolveu se manifestar sobre as críticas recebidas por Fernanda Azevedo por membros da própria classe teatral depois que ela protestou ao receber o Prêmio Shell de melhor atriz há uma semana. O grupo publicou o texto, que o blog reproduz abaixo, originalmente em seu site. Leia na íntegra:
“MISÉRIA. Reflexão sobre o Prêmio Shell de Teatro 2014.
Texto da Kiwi Companhia de Teatro sobre a repercussão do Prêmio Shell concedido a Fernanda Azevedo
Miséria
A 26ª edição paulistana do Prêmio Shell de Teatro, em março de 2014, provocou alguma discussão em função do discurso da atriz Fernanda Azevedo, que recebeu o prêmio de interpretação por seu trabalho em Morro como um País – Cenas sobre a Violência de Estado, criado pela Kiwi Companhia de Teatro.
O discurso em questão, além dos agradecimentos – de praxe, mas também sinceros – à comissão julgadora, da qual fizeram parte pequisadores de teatro que merecem nosso respeito, e às demais concorrentes ao prêmio de melhor atriz, fez referência à personagem Antígona, para quem “passado abandonado jamais se torna passado” e, como finalização, citou algumas linhas de um artigo do escritor uruguaio Eduardo Galeano, em que ele analisa a colaboração ativa da Shell com a ditadura nigeriana em meados dos anos 1990. Eis o trecho citado: “No início de 1995, o gerente geral da Shell na Nigéria explicou assim o apoio de sua empresa à ditadura militar nesse país: ‘Para uma empresa comercial, que se propõe a realizar investimentos, é necessário um ambiente de estabilidade. As ditaduras oferecem isso.’”
MIGUEL ARCANJO PRADO – Deixem a Fernanda Azevedo falar!
BRUNO MACHADO – Fernanda tem direito à incoerência
KIL ABREU – Fernanda desafiou a fantasia e apanhou
Morro como um País, trabalho cênico pelo qual a atriz recebeu a premiação, discute o conceito de “estado de exceção permanente”, as violências praticadas pelo Estado, as ditaduras do cone-sul (com referências à ditadura dos coronéis na Grécia e ao genocídio em Ruanda) e o papel da arte e da cultura diante de graves crises sociais. Em uma das nossas cenas mencionamos a Ultragás, empresa dirigida nos anos 1960 por Henning Boilesen, que apoiou e financiou a ditadura civil-militar brasileira. Na cena a Ultragás representa, sem prejuízo da sua responsabilidade pela colaboração direta com a ditadura, o grande empresariado, nacional e internacional, que se associou ao terrorismo de Estado.
Ou seja, investigar e denunciar, por todos os meios, a conivência entre empresas e regimes ditatoriais, fazem parte do nosso trabalho. No caso da Shell, além do apoio à ditadura nigeriana, que resultou na condenação da empresa e consequente pagamento de uma compensação de 15,5 milhões de dólares aos familiares de ativistas assassinados, há material consistente sobre sua conivência com a ditadura civil-militar brasileira, o que, infelizmente, não consistia exceção entre as grandes corporações empresariais, comerciais e financeiras que atuavam na época.
Até agora, quase nada sobre estes fatos foi publicado na imprensa e nas redes sociais. Fala-se, no entanto, sobre a “incoerência” da atriz em criticar a Shell e aceitar o prêmio, incluindo o valor em dinheiro, R$ 8.000. Para os moralistas de plantão, ciosos em denunciar esta abominável contradição e rápidos em apontar o dedo, nós faremos outra citação, desta vez de Robert Kurz. O trecho foi utilizado, há alguns anos, no programa de outro trabalho cênico do grupo, teatro/mercadoria #1: “Faz parte da dialética do pensamento e da ação emancipatórios que a crítica do dinheiro custe dinheiro. Toda a circulação é burguesa, mas a crítica da forma burguesa, incluindo a própria circulação, tem de abrir caminho através da circulação, porque nem sequer existe outra possibilidade de divulgar os conteúdos da crítica a uma escala maior. Temos noção das contradições que se encontram associadas a esta relação entre a forma [Kurz refere-se à revista EXIT!, portanto, uma mercadoria, editada por ele] e o conteúdo (a crítica da forma da mercadoria por parte da EXIT!). A necessidade de nos debruçarmos sobre os problemas que daí resultam faz-se sentir até ao cerne das situações relacionais do nosso contexto. Isso não altera em nada o fato de que precisam ser financiadas as atividades da EXIT!, que, para além da edição da revista teórica, incluem a manutenção do website, a organização de seminários e encontros de coordenação etc..”
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Não se trata de convencer aqueles que pensam de outra forma, inclusive porque muitos não avançam argumentos, mas apenas invectivas e frases que misturam preconceitos de classe e desonestidade intelectual. Sobre Ken Saro-Wiwa e o povo Ogoni; sobre as violações repetidas aos direitos humanos praticadas pelas grandes corporações, ontem e hoje!; sobre a infâmia da não punição de assassinos e torturadores da ditadura brasileira; sobre a atuação genocida da PM decretando a pena de morte para pobres e negros nas periferias (herança da “revolução redentora” de 64): nada. Silêncio. Mais vale fazer analogias simplistas com o convidado para jantar que critica a refeição servida (que grande tirada, hein?). Ou ainda mencionar a suposta insignificância da atriz e da peça porque o autor do comentário não as conhecem. Nossas desculpas por não nos submetermos ao circuito chique do teatro paulistano. Ou ainda argumentar [sic] que fatos antigos não merecem ser mencionados (já que o episódio nigeriano remonta há quase duas décadas). De fato, vamos esquecer a escravidão, o holocausto, o golpe militar e até mesmo a data de aniversário da minha avó, lá se vão tantos anos, afinal.
Em 1847, Marx publicou Miséria da Filosofia, ironizando uma obra de Proudhon (Filosofia da Miséria) e assentando as bases de uma nova concepção de história. Nosso tempo é de uma inacreditável miséria. Não custa lembrar que cerca de um bilhão de pessoas passa fome todos os dias. Mas além da gravidade deste fato, também é miserável saber que muitos que fazem três refeições diárias são capazes de negar o direito à crítica e incapazes de enxergar ou denunciar o modelo social em que vivemos. É miserável constatar que muitos justificam seu pequeno conforto, mas não reconhecem a legitimidade daqueles que o criticam. Miserável também é a situação da cultura no país, refém de orçamentos irrisórios, leis de renúncia fiscal e estratégias de marketing empresarial. Assim como é miserável ler comentários espirituosos sobre o nome do nosso grupo (uma sigla, aliás, caso alguém se interesse) diante da absoluta insensibilidade com a miséria, em todos os sentidos da palavra, que nos assola.
Nada disso, no entanto, é novo. Como não é novo dar golpes militares, manipular informações e ideias, torturar as palavras e oficializar o cinismo, para manter, ampliar ou readquirir privilégios. Como disse o presidente da Shell, no lugar da luta de classes, precisamos todos de um “ambiente de estabilidade”, não é verdade?
Kiwi Companhia de Teatro
São Paulo, 23 de março de 2014″
Nota do Editor: A Kiwi Cia. de Teatro é formada por Fernanda Azevedo, Fernando Kinas, Luiz Nunes, Dani Embón, Mônica Rodrigues, Eduardo Contrera, Luciana Fernandes Amparo, Fabio Salvatti, Demian Garcia, Maysa Lepique, Marie Ange Bordas, Paulo Emílio Buarque Ferreira e Gavin Adams. A peça Morro como um País volta ao cartaz nesta quarta (26) no CIT-Ecum (r. da Consolação, 1623, metrô Paulista), em São Paulo. Fica em cartaz quarta e quinta, às 21h, até 17 de abril, com entrada a R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia-entrada).
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Muito barulho por nada. Ou melhor, tempestade em copo d´água. Deixem Fernanda falar! Ela não é Garbo para ficar sozinha. É uma cidadã. Deixem Fernanda falar!