Crítica: Musical faz Elis virar mocinha da Broadway
Por MIGUEL ARCANJO PRADO
Apesar de ter tido como um de seus mestres um norte-americano vindo da Broadway, a gaúcha Elis Regina (1945-1982) não soava a uma princesinha dos musicais. Pelo contrário, a vida e a obra da maior cantora que o Brasil conheceu eram muito autênticas.
Elis, a Musical, peça de Nelson Motta e Patrícia Andrade, com direção do estreante em teatro Dennis Carvalho, tenta minimizar as contradições da vida de Elis, tornando-a mais homogênea, mais “mocinha”. O espetáculo diminui a força da Elis real na tentativa de torná-la um produto palatável e comercial, quando justamente o que Elis fez foi provar que poderia ser um produto midiático de sucesso sem abrir mão do talento e da personalidade. Provava isso a cada especial de TV ou entrevista: sempre articulada, sincera e contraditória.
A superprodução funciona mais como recital musical do que propriamente como espetáculo teatral. Antes de tudo, é preciso ressaltar o canto da atriz baiana Laila Garin. Mesmo aprisionada pela urgência e frivolidade do formato, recria Elis a seu modo e assombra a todos a cada canção – o talento evidente a distancia de boa parte do elenco. E ganha respeito como atriz na cena dramática em que recria a última entrevista de Elis a um programa de TV, semanas antes de sua morte. É seu grande momento.
Percebe-se que parte da plateia reage à obra de forma passional, o que é comum quando artistas que habitam o inconsciente coletivo “ressuscitam” no palco. Foi assim também com Tim Maia – Vale Tudo. A emoção costuma ser imediata, e o critério para julgamento fica um tanto quanto anuviado.
Os homens de Elis
De forma simples, o enredo apresenta Elis como a menina pobre que conquistou o mundo. Apesar de a encenação fazer sumir o último namorado da cantora, o advogado Samuel MacDowell Figueiredo, com quem ela falou por telefone pouco antes da morte, sobraram Ronaldo Bôscoli, o primeiro marido, e César Camargo Mariano, o segundo. Diante do que lhes é dado pelo enredo e direção, os atores fazem o que podem.
Tuca Andrade vai bem como Ronaldo Bôscoli, pai do primeiro filho de Elis, João Marcello. Mesmo com o roteiro deixando o personagem próximo a um vilão de peça infantil, ele o torna crível.
Claudio Lins aposta na leveza para compor César Camargo Mariano, o pai de Pedro Mariano e Maria Rita, os dois últimos filhos de Elis.
Outro homem importante para Elis, o bailarino norte-americano Lennie Dale, ganha cena à altura. Este criou o movimento cênico de braços que marcaria a cantora. Na pele de Dale, Danilo Timm mostra-se um exímio bailarino e defende sua cena com brilho, carisma e precisão coreográfica.
Faz falta alguma referência à diretora Myriam Muniz, que criou com Elis o espetáculo Falso Brilhante, o mais importante da carreira da cantora. Ela não é lembrada no musical, que prioriza os personagens cariocas, em detrimento dos paulistas, mesmo tendo Elis escolhido viver em São Paulo, onde morreu.
Perplexidade
Algumas cenas causam perplexidade: como os bailarinos que se arrastam pelo chão com manequins, ou as imitações bizarras de Paulo Francis e Marília Gabriela. A caracterização de Francis é absurda porque se apropria da locução arrastada que marcaria o jornalista na tela da Globo em um plano pessoal no qual ele não falava daquele jeito. Já a imitação de Marília Gabriela é ainda mais complicada.
À medida que a obra usa nomes reais e fatos de quem sempre esmiuçou sua vida diante das câmeras de TV, é preciso, pelo menos, manter certa coerência com os fatos.
Alguns fatos sofrem reducionismo, como a briga com o cartunista Henfil, depois que este enterrou Elis em uma charge. Isto se deu após ela cantar nas Olimpíadas do Exército em tempos que artistas partiam para o exílio justamente por não colaborar com o regime. Elis, neste momento da obra, parece ingênua, coisa que nunca foi.
O próprio autor da peça, Nelson Motta, aparece como personagem, mas omite o caso de amor que teve com Elis, enquanto esta era casada com Bôscoli. Só fica o lado de Elis mulher humilhada e maltratada pelo primeiro marido. Não custa nada lembrar que o apelido dela era Pimentinha.
Incômodo com a morte trágica
Regina Echeverria, que escreveu a biografia Furacão Elis, afirma que “Elis morreu, de fato, de uma dose letal de Cinzano e cocaína. Um erro de dose. Um acidente”. O próprio autor do musical, Nelson Motta, contou o mesmo em seu livro Noites Tropicais: “sempre preocupada com a voz, a garganta, seus maiores bens, [Elis] estava evitando inalar cocaína, preferindo misturá-la com uísque: dessa forma a droga vai para o estômago e demora mais a entrar na corrente sanguínea, tornando muito difícil controlar as quantidades. Foi o que matou Elis”.
Mas há, no musical, um incômodo em lidar com a morte de Elis. Talvez seja por isso que a direção perde a chance de finalizar o espetáculo quando Laila tem sua grande cena, com Elis sozinha e frágil diante da luz, respondendo a uma entrevista. Dá nó na garanta.
Mas, logo, apressados bailarinos deslizantes entram com confetes e serpentinas para carnavalizar tudo. Como se fosse proibido sentir tristeza pela partida precoce e trágica da cantora. Querer maquiar tal dor é ferir tudo que Elis foi: uma artista coerente com suas fragilidades até mesmo no momento da morte, aos 36 anos, trancada no quarto, com três filhos pequenos para criar.
Elis, a Musical enquadra a memória de nossa maior cantora nestes novos tempos do politicamente correto. Está ali uma grande cantora, mas falta a grande artista, tão viva e inquieta, sem meias verdades, que gostava de instigar, de desnortear, de provocar. O que fica é a pergunta: o que Elis Regina acharia da ideia de convertê-la em mocinha da Broadway?
Elis, a Musical
Avaliação: Bom
Quando: Sexta, 21h30; sábado, 16h (sem Laila Garin) e 20h; domingo, 17h; quinta, 21h. 180 min. Até 13/7/2014
Onde: Teatro Alfa (r. Bento Branco de Andrade Filho, 722, CPTM Santo Amaro, São Paulo, tel. 0/xx/11 5693-4000)
Quanto: R$ 40 a R$ 180
Classificação etária: 12 anos
Realmente o blog disse tudo e a crítica foi de um acerto espetacular. O trecho “O espetáculo diminui a força da Elis real na tentativa de torná-la um produto palatável e comercial, quando justamente o que Elis fez foi provar que poderia ser um produto midiático de sucesso sem abrir mão do talento e da personalidade” é particularmente brilhante.
Phillipe, você é o leitor mais inteligente do blog. Sempre com uma argumentação dialética. Mesmo quando não coincidimos eu tenho um respeito intelectual enorme por você. Aquele abraço!
Bravo Miguel!!! Coerente critica!!
Michele, muito obrigado pelo elogio e pela leitura. Um forte abraço!
Talvez o momento mais importante dessa crítica tenha sido a que o Phillipe postou.
No entanto, assisti o espetáculo 2 vezes e acho sim, que o intuito é fazer um show, um musical, retratando por intermédio da vida da Elis, os momentos importantes da história do Brasil daquela época. Tudo isso com arte. E achei muito muito bacana.
Quanto ao final da peça em que mostra uma Elis mais humana e menos estrela, foi realmente uma coisa que o próprio Denis, em entrevista, justificou que colocou na peça para eternizar essa imagem da Elis mãe, tão importante para ela.
E terminar com um final alegre, retratou o que a Elis proporcionou para seu público como artista. Terminar enfatizando sua morte, seria uma deprê total.
Enfim, é um espetáculo que por suas 3 horas de duração, não cansa.
Já assisti uma vez com a Lilian (muito boa também por sinal, como Elis, superior a Laila) e outra com a Laila que canta realmente muito bem.