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Crítica: Musical faz Elis virar mocinha da Broadway

 

Laila Garin na melhor cena do musical: Elis pouco antes da morte – Foto: Felipe Panfili/AgNews

Por MIGUEL ARCANJO PRADO

Apesar de ter tido como um de seus mestres um norte-americano vindo da Broadway, a gaúcha Elis Regina (1945-1982) não soava a uma princesinha dos musicais. Pelo contrário, a vida e a obra da maior cantora que o Brasil conheceu eram muito autênticas.

Elis, a Musical, peça de Nelson Motta e Patrícia Andrade, com direção do estreante em teatro Dennis Carvalho, tenta minimizar as contradições da vida de Elis, tornando-a mais homogênea, mais “mocinha”. O espetáculo diminui a força da Elis real na tentativa de torná-la um produto palatável e comercial, quando justamente o que Elis fez foi provar que poderia ser um produto midiático de sucesso sem abrir mão do talento e da personalidade. Provava isso a cada especial de TV ou entrevista: sempre articulada, sincera e contraditória.

Talento de Laila Garin é destaque – Foto: Felipe Panfili/AgNews

A superprodução funciona mais como recital musical do que propriamente como espetáculo teatral. Antes de tudo, é preciso ressaltar o canto da atriz baiana Laila Garin. Mesmo aprisionada pela urgência e frivolidade do formato, recria Elis a seu modo e assombra a todos a cada canção – o talento evidente a distancia de boa parte do elenco. E ganha respeito como atriz na cena dramática em que recria a última entrevista de Elis a um programa de TV, semanas antes de sua morte. É seu grande momento.

Percebe-se que parte da plateia reage à obra de forma passional, o que é comum quando artistas que habitam o inconsciente coletivo “ressuscitam” no palco.  Foi assim também com Tim Maia – Vale Tudo. A emoção costuma ser imediata, e o critério para julgamento fica um tanto quanto anuviado.

Os homens de Elis

De forma simples, o enredo apresenta Elis como a menina pobre que conquistou o mundo. Apesar de a encenação fazer sumir o último namorado da cantora, o advogado Samuel MacDowell Figueiredo, com quem ela falou por telefone pouco antes da morte, sobraram Ronaldo Bôscoli, o primeiro marido, e César Camargo Mariano, o segundo. Diante do que lhes é dado pelo enredo e direção, os atores fazem o que podem.

Tuca Andrade vai bem como Ronaldo Bôscoli, pai do primeiro filho de Elis, João Marcello. Mesmo com o roteiro deixando o personagem próximo a um vilão de peça infantil, ele o torna crível.

Claudio Lins aposta na leveza para compor César Camargo Mariano, o pai de Pedro Mariano e Maria Rita, os dois últimos filhos de Elis.

Outro homem importante para Elis, o bailarino norte-americano Lennie Dale, ganha cena à altura. Este criou o movimento cênico de braços que marcaria a cantora. Na pele de Dale, Danilo Timm mostra-se um exímio bailarino e defende sua cena com brilho, carisma e precisão coreográfica.

Faz falta alguma referência à diretora Myriam Muniz, que criou com Elis o espetáculo Falso Brilhante, o mais importante da carreira da cantora. Ela não é lembrada no musical, que prioriza os personagens cariocas, em detrimento dos paulistas, mesmo tendo Elis escolhido viver em São Paulo, onde morreu.

Elis, a Musical traz Laila Garin como a maior cantora do Brasil – Foto: Felipe Panfili/AgNews

Perplexidade

Algumas cenas causam perplexidade: como os bailarinos que se arrastam pelo chão com manequins, ou as imitações bizarras de Paulo Francis e Marília Gabriela. A caracterização de Francis é absurda porque se apropria da locução arrastada que marcaria o jornalista na tela da Globo em um plano pessoal no qual ele não falava daquele jeito. Já a imitação de Marília Gabriela é ainda mais complicada.

À medida que a obra usa nomes reais e fatos de quem sempre esmiuçou sua vida diante das câmeras de TV, é preciso, pelo menos, manter certa coerência com os fatos.

Alguns fatos sofrem reducionismo, como a briga com o cartunista Henfil, depois que este enterrou Elis em uma charge. Isto se deu após ela cantar nas Olimpíadas do Exército em tempos que artistas partiam para o exílio justamente por não colaborar com o regime. Elis, neste momento da obra, parece ingênua, coisa que nunca foi.

O próprio autor da peça, Nelson Motta, aparece como personagem, mas omite o caso de amor que teve com Elis, enquanto esta era casada com Bôscoli. Só fica o lado de Elis mulher humilhada e maltratada pelo primeiro marido. Não custa nada lembrar que o apelido dela era Pimentinha.

Incômodo com a morte trágica

Regina Echeverria, que escreveu a biografia Furacão Elis, afirma que “Elis morreu, de fato, de uma dose letal de Cinzano e cocaína. Um erro de dose. Um acidente”. O próprio autor do musical, Nelson Motta, contou o mesmo em seu livro Noites Tropicais: “sempre preocupada com a voz, a garganta, seus maiores bens, [Elis] estava evitando inalar cocaína, preferindo misturá-la com uísque: dessa forma a droga vai para o estômago e demora mais a entrar na corrente sanguínea, tornando muito difícil controlar as quantidades. Foi o que matou Elis”.

Mas há, no musical, um incômodo em lidar com a morte de Elis. Talvez seja por isso que a direção perde a chance de finalizar o espetáculo quando Laila tem sua grande cena, com Elis sozinha e frágil diante da luz, respondendo a uma entrevista. Dá nó na garanta.

Parece que é preciso encobrir a morte de Elis com muita cor e Carnaval – Foto: Felipe Panfili/AgNews

Mas, logo, apressados bailarinos deslizantes entram com confetes e serpentinas para carnavalizar tudo. Como se fosse proibido sentir tristeza pela partida precoce e trágica da cantora. Querer maquiar tal dor é ferir tudo que Elis foi: uma artista coerente com suas fragilidades até mesmo no momento da morte, aos 36 anos, trancada no quarto, com três filhos pequenos para criar.

Elis, a Musical enquadra a memória de nossa maior cantora nestes novos tempos do politicamente correto. Está ali uma grande cantora, mas falta a grande artista, tão viva e inquieta, sem meias verdades, que gostava de instigar, de desnortear, de provocar. O que fica é a pergunta: o que Elis Regina acharia da ideia de convertê-la em mocinha da Broadway?

Elis, a Musical
Avaliação: Bom
Quando: Sexta, 21h30; sábado, 16h (sem Laila Garin) e 20h; domingo, 17h; quinta, 21h. 180 min. Até 13/7/2014
Onde: Teatro Alfa (r. Bento Branco de Andrade Filho, 722, CPTM Santo Amaro, São Paulo, tel. 0/xx/11 5693-4000)
Quanto: R$ 40 a R$ 180
Classificação etária: 12 anos

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