Por AGUINALDO CRISTOFANI RIBEIRO DA CUNHA
Especial para o Atores & Bastidores*
O teatro é, por definição, efêmero, permanece somente na memória de quem vê, no registro efetuado pelas críticas teatrais, na dramaturgia da época e, eventualmente, em filmagens do espetáculo tal qual é feito no palco – mas sem a força e a energia que a montagem cênica tem, ao interagir com o público.
Temos na lembrança a memória de vigorosos espetáculos que vimos: como esquecer, por exemplo, espetáculos como Longa Jornada de um Dia para Dentro da Noite, Os Sete Alfuentes do Rio Ota, Melodrama ou de Cacilda! e demais montagens do Oficina, ou das montagens de Antunes? Ficam marcadas na memória dos espectadores, pela sua qualidade e vigor cênico.
Da mesma forma, como importante registro teatral estão as críticas: lendo os textos primorosos de Decio de Almeida Prado, surge-nos diante dos olhos o Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, em seu esplendor nos anos 1950. O que dizer, então, do registro teatral feito pelas peças de Plínio Marcos, de Jorge Andrade, de Gianfrancesco Guarnieri? O retrato histórico de uma época pela dramaturgia contemporânea é importante marco na memória teatral.
Espetáculos filmados também são uma das especialidades da BBC britânica, que filma principalmente peças teatrais baseadas em Shakespeare, como Júlio César, Ricardo III, Henrique V….
Essência
No caso de Cais ou da Indiferença das Embarcações, texto e direção de Kiko Marques, montagem da Velha Companhia — sucesso absoluto de público e de crítica na temporada teatral paulistana de 2013, premiado pela APCA e pelo Shell – um outro tipo de registro deve ser feito proximamente, marcando bem o encontro do teatro com o cinema e, com muita originalidade, propondo um prolongamento do texto teatral para além dele, um prolongamento cinematográfico, mas mantendo a essência e as reflexões propostas pelo espetáculo teatral.
Através de documentário concebido e dirigido pelo cineasta Nelson Rodrigues, documentário esse que se propõe não a registrar o teatro filmado, mas sim, a partir do espetáculo, recuperar em paralelo as histórias das personagens e as das pessoas reais que lhes deram vida, o espetáculo Cais terá sua continuação, o prolongamento cinematográfico acima referido – o que é muito bom, para a memória teatral.
Memórias
O espetáculo, segundo Nelson, “é uma reconstrução das memórias de infância de Kiko Marques sobre o cais da Vila do Abraão, na Ilha Grande. A partir das pessoas que povoaram sua meninice, Kiko traçou os laços afetivos que unem três gerações de uma mesma família. O filme mostra como são fortes esses envolvimentos, que nem mesmo o tempo, o passar do tempo, consegue apagá-los. O título surgiu de uma comparação entre homens e barcos. Os homens e suas compulsões e os barcos na sua indiferença, indiferença que confere a fatos reais, um caráter de poesia e humor. Os barcos afundam e continuam a existir. Os barcos riem e contam histórias. Os homens não. Eles vivem, e viver….”.
Falando especificamente sobre esse oportuno e mais que bem-vindo documentário, Nelson Rodrigues lembra que seu projeto “fala de um encontro que pode mudar toda uma vida….O documentário pretende causar inquietação no espectador, de modo a fazê-lo viajar para dentro de si mesmo e, daí, perceber suas próprias projeções para que se torne um ser humano melhor, mais íntegro, mais harmonizado com seus anseios. Quer que ele se aprofunde nas histórias dos ilhéus como se fossem espelhos de suas próprias vidas. Como se o espectador de alguma forma pudesse escolher entre o cais dos homens e o das embarcações. A Ilha Grande, palco da ação, vai se transformando ao longo dos anos, e ganhando novos contornos com o aparecimento de novos personagens. São eles, com suas características individuais, que impelem aquele lugar a se tornar diferente”.
Teatro e história
O diretor acentua que o documentário terá dois contextos, um “teatral” (fragmentos do próprio espetáculo) e outro “histórico” (moradores da ilha), “a fim de recuperar as histórias reveladoras do lugar. Traça-se, assim, um paralelo entre o texto de Kiko Marques e as pessoas que lá ficaram”.
O projeto, com cerca de 60% de cenas já gravadas, está em fase final de captação de recursos para conclusão das filmagens na Ilha Grande. O lançamento do filme está previsto para o primeiro trimestre de 2015. Nelson assegura que um ponto importante é fugir do teatro filmado, propondo-se a “eternizar na linguagem cinematográfica o esplendor cênico, porque o e teatro é um momento único, é trazer a câmera junto ao corpo do ator para dar mais vida à interpretação e a esse espaço sagrado”.
Lembrando como teve certeza de que Cais era o espetáculo ideal para tornar-se o foco de seu projeto “teatro versus cinema”, Nelson Rodrigues conta que ficou muito impressionado com a peça ao assisti-la: “Resolvi estudar / entender aquele lugar, a Ilha Grande. Fui para lá com uma câmera na mão e ao desembarcar no cais da Vila do Abraão percebi que aquele local tinha uma energia inexplicável Fiquei sentado no cais olhando o mar e me perguntando… Iniciei as conversas com os moradores da ilha e percebi uma conexão com o texto de Kiko Marques (histórias do presídio, de amor e das embarcações). Naquela semana tive a certeza de que era o filme que eu buscava”.
Nelson finaliza sua abordagem do documentário relembrando uma frase dita pelo veterano ator Walter Portela, (que faz o narrador em Cais):
“O Cais é poesia que se levanta do livro e se faz humana, e para fazer-se humana ela chora, grita e se desespera”.
O espetáculo, reestreará em São Paulo proximamente – para sorte de quem ainda não o assistiu. Teremos, então, o espetáculo e seu prolongamento, o documentário. Sorte de todos nós.
*Aguinaldo Cristofani Ribeiro da Cunha é crítico teatral membro da APCA (Associação Paulista de Críticos de Artes), entidade que presidiu.
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