Crítica: Musical Rita Lee Mora ao Lado não entende potência roqueira da homenageada
Por MIGUEL ARCANJO PRADO
Rock não é inocente. Nem infantil. Muito pelo contrário. Pelo menos o bom e velho rock’n’roll é ânsia de vida adulta, de rebeldia, de transgressão, de contestação. De eterna juventude.
Rita Lee, o grande nome feminino do rock brasileiro que leva a alcunha de rainha do estilo, é tudo isso e mais um pouco, com uma boa pitada de ironia fina, sempre coerente com o que foi e o que é.
O musical Rita Lee Mora ao Lado, em cartaz em São Paulo, coloca-se na missão de celebrá-la. Contudo, parece desconhecer a essência da homenageada. Peca por ser inocente na abordagem, na direção e na interpretação de uma das vidas mais interessantes de nossa música.
Classificado para maiores de 14 anos, o espetáculo parece destinado a crianças de quatro. O didatismo e a atuação próxima à do teatro infantil menospreza a capacidade de entendimento do espectador.
A encenação tem momentos constrangedores de preconceito – como quando exagera seus atores em “sapatões” e “veados” caricatos para falar das amizades da cantora em seu período na prisão.
A obra reduz a rebeldia contundente da música e da vida de Rita Lee e seus amigos, em tempos cruéis de ditadura, a níveis de comédia pastelão que não funciona. Como na cena em que Gilberto Gil explica ao delegado por que fuma maconha. A cara de idiota forçosa e a ausência de discurso são tudo que Gil nunca foi.
Há mais caricatura, como a Elis Regina de braços sempre rodopiantes, mesmo que a música não seja Arrastão. Ou um Tim Maia forçosamente misturando versos de suas canções ao texto.
E o que dizer do espalhafatoso Caetano Veloso que junta Tropicália e É Proibido Proibir em um mesmo pacote urgente e sem potência? Por fim, Ney Matogrosso surge histriônico em vez de exuberante, como o é no original. Faltou direção para conter o ator Fabiano Augusto, até porque é um dos que cantam melhor. Se apostasse mais na sutileza, teria feito algo mais crível.
Talvez a única caricatura que funcione seja a de Hebe Camargo. Apesar de a atriz Débora Reis imitar a apresentadora na velhice e não a de quase cinquenta anos atrás, período retratado no palco, o público se diverte. Pelo menos por conta da falta que sente da Hebe original, agarrando-se emocionalmente ao embuste.
Em suas duas horas e meia sem intervalo, o musical, em vez de se concentrar na trajetória de vida da homenageada, perde tempo. Como em insistir na história fictícia da vizinha invejosa da cantora, que acompanha seus passos sempre desejando seu fracasso – é uma energia para lá de negativa que conduz a peça. A atriz Carol Portes tenta jogar humor na personagem, mas é tudo tão exagerado e o texto é tão complicado, que ela fica muitas vezes exposta ao ridículo.
Parece que a obra não acredita na potência da vida e da obra Rita Lee Jones. Tanto que abre mão de executar canções fundamentais de sua trajetória para enfiar músicas de seus contemporâneos. Só no bis é que surgem aquelas canções que queríamos ouvir com calma, mas de forma apressada, porque já ninguém aguenta mais.
O musical ainda peca em questões técnicas básicas. Repletas da obviedade de movimentos, as coreografias têm ar de preguiça criativa. O figurino, quando teria um dos melhores momentos da moda mundial para retratar, sobretudo vestindo artistas que costumavam abusar da originalidade nas vestimentas, fazendo delas formas de protesto, prefere opções reducionistas e de gosto duvidoso.
A luz, assinada por Debora Dubois e Robson Bessa, pouco mostra a que veio. Um dos poucos momentos em que dialoga de fato com o que se passa no palco é quando Rita dá ao marido a notícia de gravidez, ou quando a cantora praticamente é morta no palco, já nos momentos finais da obra. Há um extenso momento-obituário, no qual a peça resolve matar uma legião de gente, inclusive quem nem sequer havia aparecido até então na história. Tem até Cássia Eller.
Na incumbência de retratar a vida de uma cantora, boa parte do elenco não canta bem, incluindo aí a protagonista, vivida por Mel Lisboa.
Mel se esforça, dá para ver trabalho. Mas ainda não estava pronta para tão importante missão. Ela até reproduz gestos da cantora, sobretudo uma Rita mais corcunda dos tempos atuais, mas falta-lhe vigor e segurança. E carisma ao executar as canções.
A banda, formada pelos músicos Felipe Cruz, Gregory Paoli, Junior Gaz, Marcio Guimarães e Robson Couto, faz seu trabalho. Em muitos momentos, parecem estar desconexos do que se passa no palco, preferindo concentrar-se em garantir as notas, mesmo que os vocalistas não as atinjam.
Algumas opções da direção são arriscadas e expõem indevidamente o ator no palco. Como a escolha de uma atriz que se assemelha fisicamente, mas não tem sequer metade da potência vocal de Gal Costa para viver a baiana, que é uma das maiores cantoras que o mundo já ouviu.
A dramaturgia, baseada no livro homônimo de Henrique Bartschi e assinada por Debora Dubois, Márcio Macena e Paulo Rogério Lopes não segura um espetáculo. Peca por didatismo e por forçar a graça, quando na verdade produz constrangimento.
A direção, de Márcio Macena e Debora Dubois, é despreparada para o que se propôs fazer. É perceptível a boa vontade e o intuito de fazer uma grande homenagem a Rita. Contudo, tal tributo soa às avessas. Dá vontade de sair correndo do teatro e correr para os braços da Rita Lee verdadeira, ainda original, rebelde, irônica, forte. Tudo que o musical não é.
Rita Lee Mora ao Lado
Avaliação: Fraco
Quando: Sexta, 21h30; sábado, 21h; domingo, 19h. 150 min sem intervalo. Até 27/7/2014
Onde: Teatro das Artes do Shopping Eldorado (av. Rebouças, 3970, CPTM Hebraica Rebouças, São Paulo, tel. 0/xx/11 3034-0075)
Quanto: R$ 60 a R$ 100
Classificação etária: 14 anos
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Concordo totalmente com a crítica de Miguel Arcanjo. Exatamente o que senti.
Eu mencionaria também o momento em que ela canta Ovelha Negra para os pais. É patético, enfiado no meio do espetáculo, sem nenhum contexto. Esta música marcou minha vida. Me decepcionei muito ! A Rita Lee merecia algo a sua altura.
Bom dia, meu jovem. Sempre leio – e aprovo! – suas críticas. E a mais contundente que vi até agora foi a de “Rita Lee mora ao lado”. Eu ganhei um convite, graças a Deus, pois se tivesse pago, estaria até agora pedindo meu dinheiro de volta. Nunca vi nada mais amador do que aquilo. Sou atriz e roteirista, além de naturalmente uma rata-de-teatro. Sei perceber hoje a discrepância entre um bom espetáculo e um que não passa nem perto disso! Lamentável eu não ter lido antes, pois assim passaria o convite a um “inimigo”. Não entendo como alguém se presta a fazer um musical sem saber CANTAR. Valha-me, Cristo! Pra mim, é o mesmo que um cirurgião não saber suturar!