Crítica: Preto no Branco reforça o preconceito
Por MIGUEL ARCANJO PRADO
“A carne mais barata do mercado é a carne negra”
(A Carne, de Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Cappelletti, na voz de Elza Soares)
Antes de mais nada, é preciso deixar claro que o diretor Zé Henrique de Paula e seu Núcleo Experimental são artistas talentosos, aguerridos, de boa vontade e que afirmam buscar melhorar a sociedade na qual fazem sua arte, mesmo que haja, neste caminho, tropeços imprevisíveis.
É preciso reconhecer tal qualidade do grupo e de seu diretor. Posto isto, passemos a explicar o porquê da perplexidade diante do espetáculo Preto no Branco, em cartaz em São Paulo.
Após tocar no tema da homossexualidade na peça Ou Você Poderia me Beijar, de forma sutil e poética, Zé Henrique de Paula e seu Núcleo Experimental resolveram falar de racismo de uma forma dura e cruel.
Efeito colateral
O texto combina violência com a ironia típica do humor inglês — distante da plateia brasileira, que insiste em enxergá-lo de forma literal.Assim, o discurso desejado tem efeito contrário.
Preto no Branco é um discurso (branco) sobre o racismo que os negros sofrem. Isso começa no próprio título brasileiro, que sugere uma invasão negra de um espaço previamente do branco (o título original inglês é menos explícito em relação ao enfrentamento racial: Mirror Teeth, “dentes no espelho”).
Pensada originalmente para a sociedade inglesa, a peça, ao ser transposta para outra realidade, a brasileira, que vive um momento de ebulição de seus preconceitos, jogando por terra o mito de povo cordial, ganha novos contornos, novos significados e novas apreensões. Assim, a peça, no encontro com o público brasileiro, acaba subvertida.
Gargalhadas preconceituosas
A autoria é do jovem britânico (branco) Nick Gill, que parece ter tido boa intenção ao escrever a obra. O recurso que ele utiliza é evidenciar a problemática, expondo padrões de comportamento preconceituosos em relação ao negro (e também às mulheres). Só que, em vez de a obra tornar-se uma experiência pedagógica para o público brasileiro, opera como reforço do preconceito que deseja combater.
Na sessão vista pelo R7, grande parte da plateia se identificou com a família (branca) racista. Cada frase preconceituosa no palco gerava gargalhadas. E o texto é repleto de frases duras e cruéis que, ditas fora do palco, levariam à prisão a quem as proferisse.
Em forma de riso, parte do público desvenda um racismo velado, que não deixa de ofender e oprimir. Esta encenação possibilita isso. Uma analogia possível seria colocar judeus para ouvirem piadas no palco sobre o holocausto e ainda terem o espectador da poltrona ao lado gargalhando.
Lembrando o teórico francês do teatro contemporâneo Jean-Pierre Serrazac, no seu livro Crítica do Teatro, “o espectador compreende se é compreendido e só é compreendido se compreender”. Assim, o espetáculo, pensado como um alerta, torna-se uma aberração de si próprio no encontro com um espectador que não consegue dialogar com a ironia proposta pela dramaturgia.
Diante da proposta estética, parte do público se sente à vontade para externar seu preconceito também.
O pensado originalmente em Preto no Branco é pervertido por seu estilo realista, que faz com que o público se identifique com os personagens arquetípicos de uma família classe média branca racista e, mais ainda, pela potência das atuações de seu talentoso elenco: Clara Carvalho (a mãe), Marco Antônio Pâmio (o pai), Thiago Carreira (o filho), Bruna Thedy (a filha e a namorada do filho) e Sidney Santiago Kuanza (o jovem namorado negro e um policial negro).
O papel do negro
O enredo se baseia na história de uma família que se espanta com o novo namorado da filha, negro e muçulmano. E segue apresentando como esta família lida com o “incômodo” dentro de casa. A encenação respeita as gags de humor propostas pela dramaturgia, com entradas e saídas de atores ao modo vaudeville.
Em Preto no Branco o lugar do negro é: inferior, subalterno, submisso, desejável só para a prática sexual, assediado, subjugado, aliciado e estuprador.
Basta ver o percurso do único ator negro na obra. O primeiro personagem, o jovem namorado (negro), aceita as humilhações às quais é exposto sem revidar, até ser persuadido a tornar-se uma espécie de capanga do pai (branco) da namorada, para ser parte da família.
O segundo personagem, o jovem policial (negro) que investiga um crime ocorrido, a princípio aparece como um possível redentor. Mas, logo é subjugado e incentivado pela família (branca) a cometer um crime bárbaro, que no discurso racista da própria peça seria comum aos negros.
Para que não haja dúvidas, o crime hediondo (cometido contra uma jovem branca desacordada) é apresentado de forma violenta e realista até que as luzes se apagam. Esta é a última imagem do negro que a peça deixa.
PS. Seria interessante (e provocante) para a realidade da plateia brasileira uma encenação que propusesse o enredo da peça com uma família negra se espantando com o namorado branco da filha.
Preto no Branco
Avaliação: Fraco
Quando: Sexta, 20h; sábado, 19h; domingo, 18h. 90 min. Até 30/11/2014
Onde: Sesc Bom Retiro (al. Nothmann, 185, Bom Retiro, São Paulo, tel. 0/xx/11 3332-3600)
Quanto: R$ 30 (inteira); R$ 15 (meia-entrada); R$ 9 (comerciários e dependentes)
Classificação etária: 14 anos
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Está vendo como a tal “liberdade na arte” não funciona muito bem? Por uma questão de perdas na tradução, ao ser montada no Brasil, uma peça que deveria atacar o preconceito pode gerar um sabor amargo. Será que esse discurso de liberdade irrestrita é saudável? Será que seremos obrigados a conviver (ainda mais!) com o que nos desagrada e com o que nos causa dissabor? Está na hora de revermos nossos valores, porque a sociedade brasileira está rachada, como claramente evidenciado nas eleições presidenciais deste ano.