Por MIGUEL ARCANJO PRADO
Fotos EDUARDO ENOMOTO
Ary Fontoura, quando anda por São Paulo, lembra-se de sua adolescência. Foi na cidade, aos 17 anos, durante uma visita com sua turma de escola, que viu, fugido de seu professor, Cacilda Becker no palco do TBC. Ali, decidiu que ser ator era sua vida.
Deu certo o sonho daquele menino. Aos 82 anos, 50 deles como ator contratado da Globo, tornou-se um dos artistas mais conhecidos e admirados do País.
Ele está em cartaz até o dia 15 de março em São Paulo, no Teatro Raul Cortez, com a peça O Comediante. A montagem é a última direção de José Wilker no teatro, que morreu repentinamente, vítima de um infarto, em abril do ano passado, durante o processo de ensaios. Anderson Cunha, que era seu assistente, tomou as rédeas e finalizou a obra, que já esteve em cartaz no Rio, com sucesso.
O texto de Joseph Meyer mostra um ator, Walter Delon, papel de Fontoura, que vive preso às lembranças do passado e tenta recuperar o sucesso perdido com uma autobiografia. No processo do livro, revive suas lembranças, imersas numa mistura de realidade e ficção.
Nesta Entrevista de Quinta ao Atores & Bastidores do R7, Ary Fontoura fala sobre a peça, a partida de Wilker e o que pensa do teatro e do desrespeitos que artistas de sua geração sofrem nos dias atuais.
Leia com toda a calma do mundo.
MIGUEL ARCANJO PRADO — Você é um artista que trabalha muito, sempre com reconhecimento. Teve algum período que você gostou mais?
ARY FONTOURA — Olha, havia uma época na televisão muito boa. Falo do fim dos 1960, 1970. Eu era um dos atores preferidos do Dias Gomes, que perdemos inclusive aqui em São Paulo, num acidente de carro. Eu fiz dez novelas com ele: A Ponte dos Suspiros, Bandeira 2, Assim na Terra como no Céu, O Espigão, Roque Santeiro… Trabalhar com ele é uma saudade que eu tenho. Tenho 50 anos de Globo e foi esta a época que eu mais gostei. Você sabe como o dia começou na Globo?
MIGUEL ARCANJO PRADO — Como?
ARY FONTOURA — Ele já escrevia para teatro e cinema. E aí o doutor Roberto [Marinho] queria ele no time de autores da Globo. O Dias começou a escrever na Globo praticamente foragido, por conta da política, que naquela época era tudo muito complicado [Dias Gomes era comunista e o Brasil vivia tempos de ditadura]. O doutor Roberto sabia de seu talento e queria ele de qualquer jeito. Ele falou, eu não posso, doutor Roberto, assinar “uma novela de Dias Gomes”. Vão censurar. Aí botaram o nome dele de Stela Calderón. Foi o pseudônimo que ele usou para começar. Foi a Stela Calderón que fez A Ponte dos Suspiros, a primeira novela dele na Globo e eu estava nela.
MIGUEL ARCANJO PRADO — Ary, falando um pouco da peça, vocês estavam ensaiando quando o Wilker morreu. Imagino que foi um momento muito difícil para todos.
ARY FONTOURA — O que acontece é o seguinte. Eu conheço o Wilker desde 1964. Ele era do Ceará, e eu, de Curitiba. Frequentamos muito no Rio os mesmos lugares do teatro, igual aqui em São Paulo tem o Gigetto. Começamos trabalhando juntos no teatro, na época difícil da ditadura militar. Ele merece ser lembrado com humor. A ida repentina dele foi uma brincadeira.
MIGUEL ARCANJO PRADO — Realmente foi uma morte inesperada naquela manhã de sábado, 5 de abril de 2014…
ARY FONTOURA — Na sexta-feira anterior à morte, soube que ele iria a Nova York, onde faria uma consulta médica dos olhos, uma cirurgia de catarata. Ele falou: “Amanhã, antes da viagem, vamos passar tudo”. Aí, eu perguntei: “E a cena final?”. Ele me deu aquele sorriso irônico e me disse: “A última cena a gente marca depois”… A gente se acostuma com a vida, mas não solucionou a morte, sobretudo a que vem inesperadamente. Eu demorei alguns dias para entender que ele foi embora.
MIGUEL ARCANJO PRADO — Como vocês resolveram continuar a peça?
ARY FONTOURA — No teatro a gente lida com emoções no palco, mas não atua 24 horas por dia. Nos reunimos para tratar do assunto e chegamos a uma certeza: que o Anderson tinha de continuar o espetáculo. Ele é jovem, simpático, gentil, com as mesmas características do Wilker e com vontade de crescer. Ele é tão dedicado que tinha todas as anotações dos ensaios. Porque o Wilker era muito metódico.
MIGUEL ARCANJO PRADO — O que lhe chamou a atenção em O Comediante?
ARY FONTOURA — Queria fazer uma peça que me desafiasse. O texto é de um autor jovem. A peça é baseada em Crepúsculo dos Deuses, é uma peça muito ligada ao cinema. O Wilker queria fazer uma coisa tecnológica, aí ele foi para Nova York e voltou zangado, porque um ator do Breaking Bad estava fazendo uma coisa parecida com o que ele queria fazer, interagindo com o público e com imagens. Eu só falava para ele: “Tomara que tenha público”. O equipamento que ele queria usar custava o dobro do patrocínio que tínhamos do Bradesco! E iria precisar de 18 técnicos, imagine só viajar com isso? Eu falava para ele: “Você está querendo fazer um musical da Broadway”. E ele me respondia: “A gente tem de pensar grande”. E eu devolvia: “Você pensa grande demais. Se você voltar outra vez a Nova York onde vamos parar?” [risos]. Depois, ele voltou e me disse. “Eu acho que a peça é muito mais que uma projeção, mas não é uma simples projeção!” [risos].
MIGUEL ARCANJO PRADO — Foi complicado estrear a peça sem ele?
ARY FONTOURA — Sim. Primeiro, achamos que fazer uma homenagem não era conveniente. Pensamos: será que não vão pensar que estávamos nos aproveitando da morte dele? Nós precisávamos era trabalhar. Voltamos para a mesma sala de ensaios. Às vezes, você precisa enfrentar. Vai doer? Vai, mas é preciso. Agora, vamos deixar o Wilker descansando.
MIGUEL ARCANJO PRADO — Está certo. Você estava afastado do teatro havia cinco anos?
ARY FONTOURA — Sim. Está muito difícil fazer teatro hoje. Antes, você pensava assim: tinha 50 mil, vendia o telefone e montava uma peça. Aí… era um sucesso ou um fracasso [risos]. Agora, você não consegue montar uma peça sem um auxílio extra. Voltamos à era medieval! Você precisa de apoio de hotel, da companhia aérea, de restaurante. E cada apoio custa muito. Não existe mais o público que banca a obra. Até porque todo mundo paga meia-entrada, quando paga. Idoso, mesmo os que têm dinheiro, pagam meia, estudante, mesmo que não estude, também paga meia… Resultado, a bilheteria é fraquíssima! Não poderíamos sobreviver de bilheteria. E na política cultural dos governantes, o teatro sempre é assunto secundário.
MIGUEL ARCANJO PRADO — Por quê?
ARY FONTOURA — Porque não querem deixar o povo raciocinar. Vejo colocando a gente sempre no canto. Falam de democracia do povo para o povo, é tudo mentira, tudo literatura. Isso afeta a vida de todos nós, não vai afetar a diversão? O teatro é cultura, mas também é diversão. Você precisa de cuidar de outras coisas para sobreviver. Tem de ter educação, saúde.
MIGUEL ARCANJO PRADO — Você não acredita quando os políticos dizem que vão ajudar o teatro?
ARY FONTOURA — Não. As promessas são infundadas. Quando chego a São Paulo e vejo uma maravilha de teatro como o Raul Cortez, onde a gente está agora, a gente não acredita. Eu tenho 82 anos e sempre foi assim, os governantes nunca ligaram para o teatro. Infelizmente, as coisas mudam para pior. Moro há muitos anos no Rio e lá, há 20 anos, não se constrói novos teatros. Se bem que teve esse novo, que custou milhões, o Cidade das Artes, que é um monstro cinza, não tem uma bandeira ou um cartaz na porta que diga: aqui se faz teatro. É horroroso. Até o jardim é mal cuidado. Tudo é ruim. Não há interesse no teatro. Essa é a política cultural que nos oprime. E isso é o que existe neste País.
MIGUEL ARCANJO PRADO — Quais são suas lembranças de São Paulo?
ARY FONTOURA — Na verdade não sou carioca nem paulista, sou curitibano. Morava em Curitiba e, quando comecei a fazer teatro, a cidade tinha 200 mil habitantes. Eu sabia que minha permanência lá seria por tempo determinado. Aí houve uma apresentação da EAD [Escola de Arte Dramática] do dr. Alfredo Mesquita lá em Curitiba. Aquilo me bateu, eu tinha 17 anos. Pensei, eu tenho que sair daqui e ir para São Paulo, meu Deus é isso que eu tenho de fazer! Perguntei ao doutor Alfredo, que estava lá em Curitiba, como seria a vida de ator em São Paulo. Ele me deu umas coordenadas. Fiquei com isso guardado.
MIGUEL ARCANJO PRADO — E quando veio para São Paulo pela primeira vez?
ARY FONTOURA — Aí, quando eu tinha 19 anos, eu vim para um simpósio de literatura infanto-juvenil com a turma do Colégio Estadual do Paraná, no Teatro Cultura Artística. Basta te dizer que eu apareci muito pouco no seminários [risos]. Foram dez dias que vi muito teatro. Fui ao TBC [Teatro Brasileiro de Comédia], vi Cacilda Becker, me encantei por São Paulo de uma maneira tal que não queria mais sair.
MIGUEL ARCANJO PRADO — E você ficou?
ARY FONTOURA — Não! Estávamos hospedados no Estádio do Pacaembu. No domingo, quando teríamos que ir embora para Curitiba, eu me escondi no banheiro, mas me esqueci que dava para ver, por cima, que eu estava lá. O maldito do professor teve a ideia de subir numa cadeira e me viu pelo alto do boxe. Ele me disse: “você pode até ficar depois, mas agora vai ter de voltar comigo, se quiser ficar tem de vir por você mesmo”. Foi a pior viagem da minha vida, 24 horas dentro de um trem, eu chorando. Foi horrível voltar para Curitiba, eu não queria ficar lá, minha família me oprimia. Depois, vim para São Paulo por conta própria. Tirava fotografia no vale do Anhangabaú para mandar para a minha família e provar que eu estava em São Paulo. Então, sempre venho com prazer para cá. O Rio acabou sendo a minha casa, o lugar que escolhi para viver, até porque comecei a fazer televisão, mas eu amo São Paulo.
MIGUEL ARCANJO PRADO — O Comediante lida com um ator mais velho que tenta voltar aos holofotes. Como é a questão do ego na profissão de ator?
ARY FONTOURA — O ego é a pior coisa de todas na vida de qualquer ator. É uma profissão onde a gente exerce sobretudo esse culto ao eu. Baseado nisso, me agrada muito que o personagem seja engraçado, porque ele é tragicômico e profundamente humano. É uma histórica que provoca uma série de problemas no sentido do futuro. A pior coisa na arte é um individuo querer aparecer novamente e não poder. Há milhares pessoas que caem de repente e não são mais tão midiáticos. E isso acontece de uma maneira cruel dentro da própria televisão. Hoje em dia, o numero de atores da maior idade estão sendo jogado de escanteio. Está certo que os jovens cheguem e tomem seus lugares. Acredito que é preciso que haja renovação, mas é preciso que haja também entendimento de que quem ainda está aí tem uma capacidade de realizar e tem uma história, que hoje em dia, em pouquíssimas ocasiões, é respeitada. Você chega e as pessoas perguntam que nome você tem. Você trabalha anos e anos em uma organização e quando vai assinar um contrato tem um executivo da vida que entrou ali outro dia e não tem nada a ver com sua área e lhe pergunta: “Você veio assinar o contrato? Qual é seu nome, por favor?”. Aí, ou você fica ou vai embora, não é? O Delon, meu personagem na peça, está inserido neste contexto. É uma pessoa esquecida. E, por ser esquecido, vive todo um conflito de uma profissão.
O Comediante
Quando: Sexta, 21h30; sábado, 21h, domingo, 19h. 90 min. Até 15/3/2015
Onde: Teatro Raul Cortez (r. Dr. Plínio Barreto, 285, Bela Vista, metrô Trianon-Masp, São Paulo, tel. 0/xx/11 3254-1631)
Quanto: R$ 70 (sexta) e R$ 80 (sábado e domingo)
Classificação etária: 12 anos
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