Crítica: Gotas D’Água sobre Pedras Escaldantes conquista Curitiba com quarteto de amor e fúria
Por MIGUEL ARCANJO PRADO
Enviado especial do R7 a Curitiba*
Fotos ANNELIZE TOZETTO/Clix
Desde que o cineasta parisiense François Ozon resolveu em 2000 levar ao cinema o texto Gotas D’Água sobre Pedras Escaldantes, a história escrita pelo alemão Reiner Fassbinder (1945-1982) com apenas 19 anos ganhou o mundo.
Primeiro, porque o roteiro era mesmo fantástico e perturbador. Depois, porque o filme conseguiu também merecer os mesmos adjetivos.
Em Buenos Aires, na Argentina, o filme impulsionou a peça La Banalidad, dirigida por Galo Ontivero, em 2005, e com o ator Juan Manuel Tellategui, hoje fazendo teatro em São Paulo, na pele do personagem Franz. A obra portenha era inspirada na peça de Fassbinder e não o texto na íntegra, como montado agora no Brasil.
Também foi o filme de Ozon, com doses fatais de submissão e tirania imersas em ironia fina, que aproximou o diretor Rafael Gomes da peça e o fez desejar montá-la no Brasil. E ele foi muito bem sucedido na empreitada.
Após carreira de sucesso em São Paulo, o que rendeu à obra indicações para o Prêmio Shell de melhor ator, para Luciano Chirolli, e melhor atriz, para Gilda Nomacce, a peça arrebatou o Festival de Teatro de Curitiba nesta quinta (26) e sexta (27) no palco do Teatro Guairinha.
Com um elenco talentoso e com presença cênica indiscutível, Rafael Gomes apresenta uma encenação pop e sofisticada para o texto de Fassbinder sobre a tirania e a submissão em simples (ou complicadíssimas?) relações amorosas humanas.
O olhar para a obra é tão pop e contemporâneo que o diretor até coloca na trilha uma refinada versão de Toxic, de Britney Spears – outra versão inusitada da mesma música também foi muito bem utilizada na peça Bichado, do norte-americano Tracy Letts, dirigida por Zé Henrique de Paula no Festival de Curitiba de 2014.
A beleza plástica da obra é reforçada por uma luz cinematográfica de Wagner Antonio e pelo cenário elegante de André Cortez. A mesma sobriedade (com pitadas de exuberância) estão no figurino assinado pelo estilista João Pimenta.
Gotas D’Agua sobre Pedras Escaldantes mostra a vida do cinquentão dominador Leopold, que se envolve com o jovem Franz, a quem logo transforma em uma espécie de capacho-mucama-prestador-de-serviços-sexuais.
Não bastasse a relação explosiva a dois, mais tarde, surgem duas mulheres para dar novo tempero à história de final surpreendente: Ana, na ex-namorada de Franz e Vera, a transexual ex-namorada de Leopold.
Atuações precisas
Luciano Chirolli demonstra tempo preciso e toda a segurança do mundo para compor seu Leopold, odiosamente carismático.
O jovem Felipe Aidar é uma revelação ao não se intimidar com o talento do colega de cena e encontrar a dose exata entre juventude, docilidade e fragilidade em sua composição de Franz, sabendo se impor também e tornando o embate com Chirolli sempre potente.
Além da sintonia fina entre os dois atores na primeira parte da montagem, surgem as duas mulheres, cada qual com sua energia própria, para dar maior peso à obra.
Nana Yazbeck faz corretamente sua personagem, a volúvel Ana, mas é Gilda Nomacce, já no finzinho da peça, quem rouba a cena como Vera, hoje mulher, mas que no passado foi um menino frágil nas mãos de Leopold, tal qual Franz no presente da obra. Em sua volta ao teatro, após um hiato de quatro anos nos quais se dedicou ao cinema, Gilda impõe um misto de desespero, decadência e resignação à personagem, o que provoca risos nervosos do público.
Com sua versão de Gotas D’Água sobre Pedras Escaldantes, Rafael Gomes se impõe como um jovem diretor que apresenta ter domínio da linguagem cênica para imprimir seu olhar estético minucioso à uma boa história. O resultado disso é um ótimo espetáculo, com boas doses de amor e fúria.
Gotas D’Água sobre Pedras Escaldantes
Avaliação: Ótimo
*O jornalista Miguel Arcanjo Prado viajou a convite do Festival de Teatro de Curitiba.
Acompanhe em tempo real o R7 no Festival de Teatro de Curitiba 2015!
Curta a nossa página no Facebook
Leia também:
Saiba o que os atores fazem nos palcos e nos bastidores
Belo espetáculo, e realmente os atores estão muito bem. Mas discordo sobre a trilha sonora. As músicas são boas, mas muito mal colocadas, atrapalham o clima de muitas cenas e as vezes encobre o texto que é belíssimo, esvaziando o sentindo do arranjo de palavras com a poesia pobre das baladas pop.
Uma crítica muito boa. Espero que ainda haja espaço para crítica no Brasil porque, de acordo com o que vemos em tramitação, é provável que a imprensa brasileira sofra uma mordaça. Cultura, Entretenimento, Política (principalmente), Economia (também), Sociedade, será que ainda terão colunas não censuradas? Será que ainda haverá gente que baterá palmas para esse governo? Nem eu, que acho que, em certos aspectos, as coisas passam do limite do tolerável, poderia imaginar uma ditadura tão forte a ponto de vedar totalmente a boca da imprensa. Deveria ser feito uma pauta sobre isso.