Alexandre Mate – A grande Mostra de Teatro de Heliópolis: a hora da Periferia em Cena
Por ALEXANDRE MATE*
“É duro andar na moda, ainda que a moda
seja negar minha identidade,
trocá-la por mil, açambarcando
todas as marcas registradas,
todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
eu que antes era e me sabia
tão diverso de outros, tão mim mesmo,
ser pensante, sentinte e solidário
com outros seres diversos e conscientes
de sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio […]”
Carlos Drummond de Andrade (Eu Etiqueta)
Apesar de o Brasil ser um país periférico, poucos são aqueles que assumem tal condição. Como mais uma fonte (naturalizada) de preconceito, é senso comum imaginar que aqueles que moram longe do “centro” (que centro?: do mundo próximo ou daquele dito globalizado: em que o inglês é condição???) sejam periféricos! Mais do que habitarmos os tristes trópicos, como a eles alguém já se referiu, um de nossos maiores padecimentos (ao lado das injustiças, da alienação, da macaqueação…) é não nos reconhecermos, infelizmente, como aldeia periférica. Tal falta de consciência e apreensão nos leva a múltiplos estados de patologia deformante: olhamo-nos no espelho, mas não nos reconhecemos; tentamos escapar de nossa condição de subdesenvolvidos (em relação àqueles mais ao norte imperialista).
Entretanto, a despeito desse estado de crise pessoal e social e de falta de reconhecimento de si-no-mundo, não são poucos os sujeitos (homens e mulheres), que ao denunciar tantas mazelas sociais e pessoais, se agrupam no sentido de criar novos lugares para ressignificar o nosso estar no mundo. Esparramados pelo Brasil (com “s” e não com “z”), novos territórios de luta vêm sendo construídos diuturnamente.
De 21 a 26 de julho ocorreu em Porto Velho (RO) a oitava edição do Amazônia Encena na Rua. Trabalho surpreendente, com público saindo pelo ladrão no espaço montado na Praça das Três Caixas d’Água. Grupos de diversos estados brasileiros apresentaram-se no Festival, promovido pelo Fecomércio e Sesc/ Senac de Rondônia. Além de oficinas práticas, palestras, um curso de crítica teatral, quinze espetáculos foram levados à cena. Sem dúvida, o evento se caracteriza em grande festa para a população portovelhense.
Muitas iniciativas têm ocorrido sem que tenhamos informações. Entretanto, em plena cidade de São Paulo (que é central ou periférica em relação ao Brasil?…), nos limites territoriais do Ipiranga/ Sacomã/ comunidade de Heliópolis/ São Caetano do Sul, de 1º a 9 de agosto, em diversos espaços da área acima descrita realiza-se a I Mostra de Teatro de Heliópolis: a Periferia em Cena. Constaram da Mostra, oficina de produção e de dança, oficina, bate-papo, um sarau e doze espetáculos, de diversas regiões da cidade.
Quase 200 projetos inscritos
No processo de seleção, a partir de quase 200 projetos inscritos, e de acordo com o edital da Mostra, foram selecionadas obras com inserção em bairros esparramados pela malha territorial da cidade de São Paulo (com mais de 1500 km² de extensão) e de acordo com gêneros e propostas estéticas distintas.
Os espetáculos que constaram da Mostra foram: Um show de variedades palhacísticas, Teatro de Rua, apresentado pelo Teatro de Rocokóz (Parelheiros – Zona Sul; Cidade Submersa, Teatro Adulto – com ênfase aos expedientes do épico-narrativo, apresentado pelo Impulso Coletivo (formado por integrantes da Zona Norte da cidade); apresentação de parte do processo do Projeto Onde o Percurso Começa, Teatro adulto – a partir de expedientes do teatro épico-narrativo, a cargo da Companhia de Teatro de Heliópolis (que foi a propositora e realizadora da I Mostra, cujos integrantes são moradores da comunidade de Heliópolis) – com ênfase aos procedimentos e expedientes do épico-narrativo; A saga do herói morto, Teatro de Rua, apresentado pela Cia. Caixote de Teatro (formado por pessoas da Zona Leste, Santo André e de Ribeirão Pires; Teatro lambe-lambe: o pequeno grande teatro, Teatro Infantil – fundamentado em expedientes do teatro de imagem, apresentado pela Cia. Mala Caixeta de Teatro Surpresa (da Zona Leste); Piratas de Galochas, Teatro de Rua – com ênfase aos expedientes épico-dialéticos, apresentado pelo Coletivo de Galochas (com integrantes de vários pontos da cidade e fundado na ECA-USP); O concerto da Lona Preta, Teatro de Rua – com ênfase à palhaçaria musical, apresentado pela Trupe Lona Preta (cujos integrantes são da Zona Sul); Peter em fúria, Teatro Adulto, com ênfase aos expedientes do teatro épico-musical, apresentado pelo Pequeno Teatro de Torneado, cujos integrantes (mais de trinta pessoas) moram nos mais diversos bairros da cidade de São Paulo; Histórias de lajes, ruas e vielas, Teatro Adulto – com expedientes do épico-narrativo, apresentado pelo Grupo Arte Simples de Teatro (com integrantes moram em várias regiões da cidade de São Paulo, e cuja sede fica na comunidade de Heliópolis); Um bravo canto para desatar os nós, Teatro de Cordel, apresentado pela Confraria da Paixão – Teatro e Cultura Popular (cuja sede fica na Barra Funda); Juquery: memórias de quase vidas, Teatro Adulto – com ênfase aos procedimentos e expedientes do épico-narrativo, apresentado pelo Teatro Girandolá (cuja sede e atuação centram-se no município de Francisco Morato); Eróticoelha, Performance, apresentada pelo Coletivo Parabelo (formado por integrantes de vários bairros da cidade); Hospital da gente, Teatro Adulto – com ênfase aos procedimentos e expedientes do épico-narrativo, apresentado pelo Clariô de Teatro (cujas integrantes são de Taboão da Serra).

Atenção de todos (até do cachorro): público da periferia paulistana assiste peça na Mostra de Teatro de Heliópolis – Foto: Divulgação
Imensa aldeia periférica
A I Mostra de Teatro de Heliópolis: a Periferia em Cena foi apresentada em diversos lugares – entre o Sacomã e a comunidade de Heliópolis e conseguiu ser realizada graças ao projeto ter sido selecionado no Programa de Ações Culturais (Proac – Secretaria de Estado da Cultura) e contou com perto de 2000 espectadores. A equipe de idealização e realização do evento tem a seguinte ficha técnica:
Idealização: Cia de Teatro Heliópolis e MUK; Direção: Miguel Rocha; Direção de Produção: Daniel Gaggini; Curadoria: Alexandre Mate; Diretor Técnico: Toninho Rodrigues (Tom Light); Produção: Dalma Régia; Produtora Assistente: Luh Moreira; Sarau: PC Marciano e Bárbara Esmenia; Assessoria de Imprensa: Eliane Verbena; Designer Gráfico: Camila Teixeira; Fotos e Vídeos: Geovanna Gelan; Revisão Ortográfica do Programa: Luciana Rossi; Assistente de Produção: Fabiana Josefa da Silva, Klaviany Costa, David Guimarães, Donizete Bomfim e Léo GonzagaRealização: Associação Comunitária Nova Heliópolis, Cia. de Teatro Heliópolis e MUK.
Quanto à importância do registro documental do evento descrito, alguns integrantes do Grupo de Pesquisa do Centro Nacional de Pesquisa (CNPq): “Crítica de Teatro de Rua”, coordenado por Alexandre Mate, apresentaram leituras críticas de todos os espetáculos apresentados durante a I Mostra e podem ser lidas na íntegra aqui.
Finalmente, e voltando às especulações iniciais, os/as artistas que participaram da I Mostra de Teatro de Heliópolis: a Periferia em Cena sabem-se, na condição de pertencimento ideológico-político, pertencer à uma imensa aldeia periférica.
*ALEXANDRE MATE é professor do Instituto de Artes da Unesp (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”) e pesquisador de teatro.