“Como o público se relaciona com a nudez é problema de cada um”, diz coreógrafa uruguaia Tamara Cubas
Por MIGUEL ARCANJO PRADO
Enviado especial a Campinas (SP)*
A uruguaia Tamara Cubas chamou a atenção da população de Campinas (SP) ao colocar mais de 60 bailarinos brasileiros no Marco Zero da Unicamp e na antiga Estação de Trem da cidade, a atual Estação Cultura, no espetáculo Multitud (Multitude).
Em constante embate de corpos e com variações rítmicas de movimentação, a obra lembrou a agonia do homem urbano, ao experimentar o cansaço e os limites nos corpos dos dançarinos.
Vinda de uma família que lutou contra ditadura militar que castigou o Uruguai entre 1973 e 1985, esta foi a primeira vez que Tamara trabalhou com bailarinos brasileiros, selecionados por meio de um chamamento público.
A criação da obra foi vertiginosa. Ela só teve uma semana para montar o espetáculo, já feito em Montevidéu, Santiago do Chile e Cidade do México.
O resultado pareceu agradar tanto a uruguaia quanto ao público campinense, que acompanhou as duas horas da montagem de forma resistente e aplaudiu a obra ao fim.
Assim que terminou a última das duas sessões no evento, Tamara conversou com exclusividade com o Site do Miguel Arcanjo. Falou sobre o espetáculo, da relação que mantém com o Brasil e ainda deu sua visão sobre a situação da dança contemporânea e opinou sobre o nu em cena.
Leia com toda a calma do mundo.
MIGUEL ARCANJO PRADO – Como é sua relação com o Brasil?
TAMARA CUBAS – Afortunadamente, minha relação com o Brasil vem de muitos anos. Minha relação com o Brasil de trabalho já vai para 15 anos, seja em oficinas, em estar em cartaz com espetáculos… Mas esta é a primeira vez que monto algo com pessoas daqui.
MIGUEL ARCANJO PRADO – Como foi este desafio? Você veio para o Brasil quanto tempo antes?
TAMARA CUBAS – Este espetáculo foi montado em sete dias. Um trabalho com os jovens em apenas uma semana. Então, foi muito intenso, muito curto e muito forte. São entre 60 e 70 bailarinos vindos de muitos lugares do Brasil após a convocatória.
MIGUEL ARCANJO PRADO – Sua obra me soou urbana. Vivo em São Paulo, uma cidade cheia de gente, com muita movimentação no metrô. Você vem de um país pequeno, que é o Uruguai, no qual a maior metrópole, Montevidéu, ainda é pequena comparada a São Paulo. O que você quis falar com este espetáculo?
TAMARA CUBAS – O que me interessava perguntar e problematizar na prática era a ideia de como se pode organizar um grupo de gente, um coletivo, hoje em dia. A ideia de multidão se opõe à ideia de massa, que a massa vai atrás de um líder, então como um grupo de pessoas pode se organizar e compor algo. Por mais que haja uma estrutura, eles tomam decisões e vão compondo a complexidade do espetáculo. Como pessoas diferentes, com lógicas distintas de organização de cada um em cena, eles podem perceber-se, comunicar-se de outras formas e fazer algo juntos. São pessoas bem diversas.
MIGUEL ARCANJO PRADO – Os movimentos estão roteirizados ou há improvisação no momento da obra?
TAMARA CUBAS – Em cada cena há lógicas de organização. Mas, depois, eles ganham autonomia. A ideia é como uma norma. Ao invés de uma composição no espaço, há uma norma: como nos vamos organizar agora. Mas depois eles têm toda a liberdade, disso se trata. À medida que se avança o processo eles vão compreendendo que podem ter muita liberdade dentro dessa norma. Fazê-la ou não. Nesta última sessão, teve o que chamamos de singularizações. Um casal ficou abraçado durante uns 20 minutos. Isso são coisas que surgem e eles trabalham e compõe no momento. Sempre tendo muita percepção do outro e de seu próprio desejo, tendo em mente que é um trabalho coletivo, que é para o público. Senão, seria uma terapia grupal.
MIGUEL ARCANJO PRADO – Muita gente diz que a dança contemporânea está em crise, que não há definição para ela. Você concorda?
TAMARA CUBAS – Eu não creio em crises. O pensamento sempre está em movimento. O que se pensava ontem hoje se problematiza e amanhã pode ser outra coisa. Eu sigo chamando de dança. Eu não tenho problema com etiquetas, essas coisas. Porque quando há trabalhos que puxam as margens sempre é para problematizar. Não creio em crise. Creio que simplesmente há movimento, do pensamento, do homem. O que chamam de crise, na realidade, é algo que permite ao homem avançar.
MIGUEL ARCANJO PRADO – A nudez dos bailarinos está presente na sua obra, assim como também no espetáculo que abriu esta Bienal Sesc de Dança, o francês Tragédia. O que você pensa da nudez na dança e sobre como os bailarinos e o público a encara? A nudez em cena ainda quer dizer algo ou não?
TAMARA CUBAS – É um corpo. Depois, o tema de como o público se relaciona com a nudez é um problema de cada um. Ou seja, o corpo nesta obra está colocada de forma muito natural, muito anatômica. Creio que não nos corresponde a nós preocuparmos com que o outro pensa. O público tem de se fazer responsável por sua leitura e de suas próprias neuras e possibilidades. Isso é problema dele. Me parece que um não deve assumir a responsabilidade do público. Porque se supõe que é uma relação. Cada um é responsável por sua parte. O público tem que trabalhar também. Senão seria um espetáculo no qual estaríamos trabalhando algo para que consumam, aprovem ou não aprovem. Se tem o tema da nudez na dança, é porque para ela isso é supernatural. A dança trabalha com o corpo, então, a nudez é uma possibilidade. Por que não? Por que sim?
MIGUEL ARCANJO PRADO – Muitos brasileiros geralmente estão de costas para o restante da América Latina, olhando para Estados Unidos e Europa. Acha que devemos nos aproximar mais?
TAMARA CUBAS – Nós uruguaios temos uma relação forte com o Brasil, seja por sua cultura… No nível da dança há uma conexão muito forte. Porque nos encontramos e nos espelhamos um no outro. Já tem um dez anos para cá que estamos muito próximos, tem que ver com o que estamos pensando. Uruguaios e brasileiros nos encontramos na dança, por sorte.
*O jornalista MIGUEL ARCANJO PRADO viajou a convite do Sesc.