Crítica: Satyros retoma Os 120 Dias de Sodoma com discurso político atual

Os 120 Dias de Sodoma: Satyros reinventa sua própria obra com elenco renovado - Foto: André Stefano/Divulgação

Os 120 Dias de Sodoma: Satyros reinventa sua própria obra com elenco renovado – Foto: André Stefano/Divulgação

Por MIGUEL ARCANJO PRADO

Enquanto muitos por aí proclamam a crise do teatro político, o grupo Os Satyros mostra que ele está mais vivo do que nunca. Basta reinventá-lo, mostrando que, mesmo em tempos líquidos de ideologias dispersas, é possível fazer um teatro repleto de discurso contundente e impactante — Zé Celso e seu Oficina sempre o fizeram, é preciso lembrar.

Prova disso é a nova leitura assinada pelo diretor Rodolfo García Vázquez para Os 120 Dias de Sodoma, parte da Tetralogia Libertina do grupo, criada a partir da obra do escritor francês Marquês de Sade (1740-1814).

Leia também a crítica para a peça Juliette, do Satyros

O mesmo texto já foi consagrado no cinema em versão polêmica em 1975 do diretor italiano Pier Paolo Pasolini (1922-1975), chamada Saló – Ou os 120 Dias de Sodoma. Se o filme é considerado pela crítica internacional como um dos mais perturbadores da história do cinema, a peça do Satyros pode ganhar o mesmo título em sua linguagem, o teatro.

Flavio Sales e Sabrina Denobile: dupla de cafetinas alcoviteiras da perversão - Foto: André Stefano/Divulgação

Flavio Sales e Sabrina Denobile: dupla de cafetinas alcoviteiras da perversão – Foto: André Stefano/Divulgação

Em um Brasil que retoma laços com o conservadorismo cada vez mais forte e também abraça um discurso religioso opressivo ao outro, a peça soa ainda mais contundente por revelar a hipocrisia e a sujeira do poder.

Sobretudo pela escolha de Vázquez em vestir a carapuça dos libertinos da montagem nos políticos hipócritas que fazem discursos inflamados e moralistas nas tribunas do Congresso Nacional.

A montagem evidencia ainda uma renovação no elenco do grupo Os Satyros, saindo de cena no espetáculos nomes tradicionais da trupe, para dar lugar a uma jovem geração sedenta de palco, muitos saídos das oficinas que o próprio grupo promove aos fins de semana na praça Roosevelt.

E é no encontro com essa juventude que Vázquez, com a assistência de Gustavo Ferreira, renova seu teatro e a peça que fez história em sua companhia. E segue fazendo, como mostrou a plateia lotada no dia em que este crítico assistiu à obra.

Flavio Sales em cena de Os 120 Dias de Sodoma: uma das revelações do ano nos palcos - Foto: André Stefano/Divulgação

Flavio Sales em cena de Os 120 Dias de Sodoma: uma das revelações do ano nos palcos – Foto: André Stefano/Divulgação

É claro que, quem viu os elencos anteriores pode sentir falta de uma Marta Baião no palco. Mas, também se impressiona com surgimento de um talento cênico potente como Flavio Sales e seu inseparável pirulito — o ator é uma das revelações do ano no palco.

Narrada com propriedade por um circunspecto Silvio Eduardo,  a peça conta a história de um grupo de quatro poderosos políticos, interpretados por Alex de Felix, Marcelo Thomaz, Marcelo Vinci e Rhafael de Oliveira — o quarteto convence na sordidez das personagens, levando-os a matizes distintas, mas igualmente repugnantes até na suposta sofisticação aristocrática pretendida.

Tom Garcia, Rhapael

Tom Garcia, Rhafael Oliveira, Hugo Godinho e Lucas Cavallaro (sentando no chão) em cena de Os 120 Dias de Sodoma – Foto: André Stefano/Divulgação

Estes, além de roubar e enganar o povo, mandam sequestrar adolescentes e os levam em um castelo isolado nas montanhas, onde praticam toda a sorte de perversões sexuais com os jovens, sempre assistidos pelas cafetinas alcoviteiras, interpretadas por Flavio Sales e Sabrina Denóbile.

Se Flavio faz uma transexual abusada, resoluta e repleta de vícios, Sabrina aposta em construção também minuciosa que faz lembrar aquelas cafetinas do Planalto Central que nossos políticos conhecem muito bem. A construção é potente discurso. E ao manter certo humor em suas aparições, a dupla ajuda a aliviar a crueldade presente no texto, em um respiro necessário para deglutição da obra.

Marcelo Thomaz e Tom Garcia: encontro de opressor e oprimido - Foto: André Stefano/Divulgação

Opressor e oprimido: Marcelo Thomaz e Tom Garcia em cena de Os 120 Dias de Sodoma – Foto: André Stefano/Divulgação

Espécies de capangas dos opressores, sempre com grunhidos tenebrosos e movimentação sádica até mesmo nas pontas dos dedos, Lucas Allmeida, Fernando Soares, Evandro Roque e Hugo Godinho formam o quarteto violento de “fodedores” que mantêm controlada a submissão dos jovens violentados, oferecendo seus corpos e membros avantajados ao prazer e ao delírio perverso.

Atuando como as jovens vítimas, demonstram coragem e entrega os atores André Louis, Daiane Brito, Débora Cruz, Diego Ribeiro, Felipe Souza, Hanna Perez, Júlia Innocencio, Lucas Cavallaro, Tássia Dur e Tom Garcia. Todos merecem aplausos por lidarem a cada sessão com aquela situação tão complexa vivida por suas personagens. Não deve ser fácil, sabemos todos.

Ao retomar Marquês de Sade e, sobretudo, Os 120 Dias de Sodoma, o grupo Os Satyros volta ao que sabe fazer melhor: um teatro sem amarras morais que confronta a hipocrisia cada vez mais vigente, revelando a perversidade do mundo e do poder. Assim, tentam desmascarar aqueles que se apresentam como salvadores de almas, evidenciando uma faceta oculta. O que Os 120 Dias de Sodoma mostra é que, na verdade, estes seres sádicos tragam tudo ao seu redor, com fome insaciável. Por isso, é preciso estar atento. E não abrir mão da liberdade de dizer, de expor, o que por si só já é discurso altamente político e potente.

Os 120 Dias de Sodoma * * * *
Avaliação: Muito bom

Elenco numeroso no palco do Estação Satyros: Os 120 Dias de Sodoma - Foto: André Stefano/Divulgação

Elenco numeroso no palco do Estação Satyros: Os 120 Dias de Sodoma – Foto: André Stefano/Divulgação

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1 Resultado

  1. 13/12/2015

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