Entrevista de Quinta: “Não me sinto uruguaio, nem francês; eu sou eu”, diz Sergio Blanco, de Tebas Land
Por MIGUEL ARCANJO PRADO
Enviado especial a Curitiba*
O dramaturgo e diretor Sergio Blanco, uruguaio radicado na França, se prepara para visitar mais uma vez o Brasil nos próximos dias.
Admirador da arquitetura de Oscar Niemeyer e da literatura de Clarice Lispector, ele aporta em Curitiba na próxima semana, quando apresenta nos dias 30 e 31 de março no Teatro da Reitoria a peça Tebas Land, uma das 35 da Mostra Oficial do 25º Festival de Teatro de Curitiba, principal evento das artes cênicas no Brasil.
A obra mostra um encontro entre um escritor e um parricida, homem que matou seu pai, na quadra de basquete de uma prisão. O espetáculo estreou em Montevidéu e já rodou o mundo, além de ganhar traduções em diversos países, com novas montagens.
Direto de Paris, onde vive desde os 18 anos, Blanco concedeu esta exclusiva Entrevista de Quinta, na qual fala de sua relação com o teatro, de estranhamento em relação ao Brasil, de como criou sua obra e ainda conta detalhes de sua infância, quando contrabandeava doces e revistas pornográficas do Brasil. Ele ainda revela por que escolheu viver na França e comenta como vê a atual crise política brasileira.
Leia com toda a calma do mundo.
MIGUEL ARCANJO PRADO – Nós, latino-americanos, temos muitos artistas que fizeram suas obras fora de suas terras, como Copi, Boal e Cortázar, na França, e Drexler, na Espanha. Como é ser um artista uruguaio que vive longe de sua terra? Como essa particularidade interfere na sua criação?
SERGIO BLANCO – No meu caso não interfere em nada. Eu não me sinto uruguaio. Tampouco me sinto francês. Eu sou eu, e nada mais que isso. Não sou uruguaio nem francês. O que é ser uruguaio? Não sei. O que ser francês. Tampouco o sei. Eu creio que não quer dizer nada nem um nem outro. Não sinto que Uruguai seja mina terra mais que Islândia ou Singapura ou Texas. Não creio na identidade ligada a um país ou a uma nação ou a uma terra. A única identidade válida é eu sou eu e esse eu se constrói de coisas muito mais substanciais que um território geográfico. De verdade, penso que a única identidade que conta é eu sou eu, ou, melhor dito: eu sou muitos eus. Esse último eu gosto: ser uma multiplicação de eus que convivem em paz e em guerra dentro de um.
MIGUEL ARCANJO PRADO – Por que tocar o tema do parricídio em sua peça Tebas Land, tendo Édipo como referência?
SERGIO BLANCO – Meu interesse foi o de abordar o tema de um encontro de um parricida que está na prisão com um escritor que quer representar a história do parricídio. E a partir daí e enquanto a fui escrevendo, a obra foi colocando dois temas. O primeiro foi o tema da empatia. De alguma maneira, a obra fala do encontro que se dá entre dois mundos muito distantes como são o mundo do escritor S. e o mundo do prisioneiro Martín. E esse encontro entre ambos se dá graças a empatia que se vai criando entre eles. Isso é bonito, concorda? Há um abismo entre ambos e, contudo, conseguem encontrar-se e reconhecer-se. Há um momento da peça em que cada vez que leio o que o vejo representada, tenho a impressão de que um tem fome do outro. E isso é bonito: ter fome da alteridade, ainda que este outro seja distante de mim. E o segundo tema que a peça foi colocando à medida que a escritura avançava era a dificuldade do escritor para poder representar teatralmente essa história: Como representar um acontecimento irrepresentável? Creio que estes dois temas são os temas que aborda Tebas Land. Se poderia falar que o primeiro tema é de corte mais ético e que o segundo tema é de corte mais estético, não?
MIGUEL ARCANJO PRADO – É a primeira vez que você viaja ao Brasil e ao Festival de Curitiba ou já teve outras experiências no País? Quais?
SERGIO BLANCO – Já estive várias vezes no Brasil. Já montaram textos meus e também já fiz muitas conferências e seminários. Seja em Florianópolis, em São Paulo, no Rio de Janeiro ou em Belo Horizonte, sempre foram experiências muito interessantes. Brasil é um país ao qual me gosta muito ir porque é um território onde tudo me é alheio, me é distante, me é desconhecido. A gente, a língua, as paisagens, as cidades, os costumes, os corpos, as comidas… Creio que tudo o que há no Brasil não tem nada que ver comigo. E por isso gosto de ir. Eu creio que é o país mais inadequado para mim. E por isso vou. Mas, ademais, também vou porque gosto muito de Niemeyer, e essa é uma boa razão para ir, para poder visitar suas construções. Faz uns anos eu fui dois meses inteiros e recorri suas obras por todo o Brasil, comecei na Igreja São Francisco de Assis, em Belo Horizonte, e terminei em seu teatro de Niterói. Cheguei a visitar 40 lugares. E os azulejos de Athos! O muro do Congresso em Brasília é uma delícia. Creio que gosto do Brasil pelo inadequado que me é e por Niemeyer. Duas boas razões para ir a cada tanto.
MIGUEL ARCANJO PRADO – O Brasil passa por este momento por uma grande instabilidade política. O país está muito dividido, com parte das pessoas querendo tirar a presidenta Dilma Rousseff e outra parte saindo às ruas para pedir o respeito à democracia. Você tem acompanhado estas noticias? O que opina?
SERGIO BLANCO – Tenho acompanhado de muito perto. Sou um grande defensor das instituições políticas e dos pactos republicanos que creio que há que se respeitar. É algo que me interessou muito. Uma coisa é o que diz a Constituição e outra coisa são os procedimentos pelos quais se aplica a Constituição, e em tudo isso o que está passando, é claro que os procedimentos desbordaram os marcos jurídicos. Há que prosseguir com os procedimentos de investigação jurídicos porque dentro da lógica republicana a independência da Justiça é fundamental, mas há que se preservar que estes procedimentos jurídicos não se transformem em procedimentos políticos inadequados. Em tudo isso que está passsando, desgraçadamente se estão aplicando mais lógicas políticas que as jurídicas.
MIGUEL ARCANJO PRADO – Como foi o processo de criação da obra? Foi feita na França ou no Uruguai? E os atores, vivem onde e como os conheceu?
SERGIO BLANCO – A peça Tebas Land foi escrita em 2012 em Paris, que é a cidade onde vivo, logo foi ensaiada e estreada em 2013 em Montevidéu, com dois atores uruguaios extraordinários, que são Gustavo Saffores e Bruno Pereyra. Essa encenação que foi dirigida por mim teve um grande êxito tanto no Uruguai quanto no estrangeiro. Desde então, não parei de viajar pela América Latina e Europa. Essa encenação que poderá ser vista em Curitiba. O processo de escritura de Tebas Land foi muito rápido. É uma peça que escrevi em uma semana. Uma manhã, bem cedo, quando saía a trabalhar na Universidade, vi debaixo de uma estação de metrô, uma quadra de basquete toda gradeada e, em seguida, pensei que seria interessante escrever uma peça de teatro que se sucedesse nesse lugar. Recordo que nem bem subi ao metrô, tirei meu caderno de notas e comecei a desenhar o dispositivo. Por isso sempre digo que Tebas Land é uma peça que comecei desenhando. Poucos meses depois, reuni minha equipe de trabalho, convoquei os atores que já havia visto atuar e em um mês e meio a ensaiamos. O tempo de ensaios foi lindo. Eu havia pedido à produção para ensaiar de manhã bem cedo, então começávamos às 8 da manhã. Eu queria que todos chegássemos ao ensaio recém-despertos, com nossas cabeças, nossos corpos e nossas emoções sem nenhuma contaminação diurna. Eu os esperava, nos sentávamos em torno de uma mesa que havia na sala de ensaio, tomávamos café da manhã e, pouco a pouco, começávamos a levantar a peça. Dessa maneira e com muita delicadeza, minhas palavras foram buscando a carne deles dois. Por isso mesmo, quando editei Tebas Land, decidi dedicar o livro a eles dois com a seguinte dedicatória: “A Bruno Pereyra e Gustavo Saffores por ser a carne que estas palavras encontraram…” Tanto Gustavo quanto Bruno são dois atores imensos, inteligentes, sensíveis, lindos. Todas as manhãs eu me sentia tão feliz olhando a eles dois ali, diante de mim. Logo a obra começou a ser traduzida a outras línguas e então estreou na Alemanha. E agora em poucos dias se estreará na França. E em uns meses na Espanha. E no Chile. E no México. E então aquela quadra e basquete que parei para olhar uma manhã, agora anda por todos os lados. É estranho.
MIGUEL ARCANJO PRADO – A obra iria estrear no Teatro San Martín de Buenos Aires… Qual sua relação com o teatro portenho?
SERGIO BLANCO – A obra estreou em Montevidéu. No começo ia estrear no Teatro San Martín de Buenos Aires. De fato, eu escrevi para eles. A pedido deles. Mas de repente cortaram toda a comunicação comigo e não me responderam mais. Primeiro, antes de que escrevesse Tebas Land, eles me haviam pedido um projeto. Então eu escrevi uma peça que se chama O Salto de Darwin. É um texto que fala do tema da guerra das Ilhas Malvinas. Me falaram que sim, começaram a trabalhar com a produção e um dia me chamaram para dizer-me que finalmente não poderiam fazer a peça. Nesse momento, me pediram que lhes apresentasse outro projeto. E então foi aí que lhes escrevi Tebas Land. Me falaram que sim. E de repente não me responderam mais. Foi tudo muito estranho. Ao fim, decidi estreá-la em Montevidéu… O teatro portenho é uma maravilha. Eu adoro. Há Mestres. Há grandes nomes como Mauricio Kartún, Ricardo Bartís, Alejandro Tantanian, Lola Arias, Rafel Spregelburd… E, ademais, são todos tão generosos. Em Buenos Aires há também gente como Jorge Dubatti, que creio que junto ao espanhol José Luis García Barrientos são dois dos pensadores mais importantes que tem atualmente o teatro em língua espanhola.
MIGUEL ARCANJO PRADO – O que você opina sobre o teatro que se faz no Uruguai? Qual é o lugar do teatro no panorama cultural do seu país?
SERGIO BLANCO – Me custa muito falar e opinar sobre o teatro no Uruguai. Não sou bom para fazê-lo. Não sou objetivo. E ademais não creio que minha opinião tenha muito interesse. O que sim eu gosto é de falar do teatro que levam adiante colegas que admiro, respeito e quero. Hoje em dia em Montevidéu você tem nomes como Gabriel Calderón, Santiago Sanguinetti, Mariana Percovich, Marianella Morena, Roberto Suárez, Verónica Mato, Gabriel Peveroni, María Dodera… Todos eles e elas são também mestres para mim. Adoro ler seus textos, ir ver suas encenações, discutir com eles. Trato de trabalhar junto deles e delas tudo o que posso. Um aprende e desaprende tanto com os criadores que admira e que, ademais, ama. Por exemplo, recém acabo de dirigir em Montevidéu meu último texto A Ira de Narciso e o ator que a interpreta é Gabriel Calderón, que é um dos nossos maiores dramaturgos atuais e um diretor extraordinário. O mês e meio que ensaiei com ele foi para mim um aprendizado constante. Quando terminávamos os ensaios e ele se ia, porque Gabriel sempre está correndo de um lado para outro, eu tomava meu caderno de notas e começava a fazer anotações de todo que lhe havia escutado dizer. Não o queria fazer diante dele, mas cada vez que ficava sozinho, o fazia, como se fosse um aluno. E, contudo, Gabriel tem dez anos menos que eu e até foi meu aluno. Mas agora sou eu que se sente como seu aluno.
MIGUEL ARCANJO PRADO – Quando você era criança, o que passava por sua cabeça quando escutava a palavra Brasil?
SERGIO BLANCO – A pornografia. Brasil era para mim o lugar de onde vinham as revistas pornográficas que comprávamos clandestinamente com meus amigos de adolescência quando tinha 11 ou 12 anos. O outro com que vinculava o Brasil era com o contrabando, porque íamos na fronteira com o Brasil e comprávamos tudo muito barato e trazíamos escondidos para que os guardas da fronteira não vissem. Aquilo era maravilhoso: trazíamos chocolates, palmitos, maionese, bananada e tudo escondido e dissimulado. Isto é dizer que na minha infância e adolescência Brasil era uma palavra ligada ao oculto, ao clandestino, ao que se esconde. E isso durou até que um dia, também durante a adolescência, li Clarice Lispector… E então Brasil começou a ter seu rosto para mim.
MIGUEL ARCANJO PRADO – Por que você escolheu viver na França? Quando foi para aí? Não tem vontade de voltar ao Uruguai?
SERGIO BLANCO – Desde criança nunca gostei da língua espanhola, que é minha língua materna. Queria escolher outra língua. Sentia que o espanhol me havia escolhido a mim e o que eu queria era poder escolher uma língua. E então escolhi o francês, que eu sempre digo que é minha língua paterna. Estudei essa língua desde criança. À medida que ia crescendo, também iam crescendo em mim a vontade de vir viver no território dessa língua. Aos 18 anos, dirigi em Montevidéu uma encenação de Ricardo III, de Shakespeare, e com essa encenação ganhei um prêmio nacional da crítica, que vinha acompanhado com uma bolsa de estudos na França. E então aí vim viver em Paris. É esse lugar onde me sinto melhor, pela beleza da cidade, pelo céu cinza permanentemente, pelo mal humor dos parisienses, pelas suas livrarias, pelas suas confeitarias, por seus museus… É um lugar onde a raiz do tempo nublado que é quase constante, há uma luz que me ajuda a concentrar-me e a poder escrever tranquilo.
MIGUEL ARCANJO PRADO – Por que você faz teatro?
SERGIO BLANCO – Sempre o quero saber, mas não tenho sucesso em dar-me conta por quê. Me fazem essa pergunta seguidamente e eu também me faço, mas não consigo achar a resposta. A vezes penso que faço teatro porque é o único que sei fazer. Porque gosto da ficção e ver gigantes onde há moinhos. A semana passada me perguntaram por que escrevia e dei uma resposta que eu gostei: escrevo para conhecer o final de minhas peças.
*O jornalista MIGUEL ARCANJO PRADO viajou a convite do Festival de Curitiba.
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