Crítica: Farinha com Açúcar é grito de existência e de referências do negro periférico

Jé Oliveira em cena de Farinha com Açúcar - Foto: Jorge Martins

Jé Oliveira em cena de Farinha com Açúcar – Foto: Jorge Martins

Por MIGUEL ARCANJO PRADO

A nova peça do Coletivo Negro, Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens, é, antes de mais nada, um grito de existência e de referências. E de basta também. Afinal, joga foco sobre o principal alvo da violência policial na cidade de São Paulo: o homem negro, que vem sendo dizimado sem que a sociedade se importe com isso.

Jé Oliveira, idealizador do projeto e também ator e diretor, construiu a dramaturgia com base em depoimentos reais de homens negros, que falaram sobre a masculinidade no ambiente da periferia, atravessada sempre pela questão étnica.

Assim, a obra é um compilado de relatos que se entrecruzam, que vão desde a violência policial cotidiana, passando pela religiosidade afro-brasileira até a relação matriarcal crucial nas comunidades pobres, onde mães assumem a tarefa de criação dos filhos, como guerreiras da força e do afeto.

Se a farinha com açúcar sustenta tais homens, o espetáculo tem sustança farta nos virtuosos músicos que acompanham Jé Oliveira no palco, cada um em seu barraco, na cenografia de intenso diálogo com o tema proposta por Júlio Dojcsar, da CasadaLapa.

Jé Oliveira é acompanhado por músicos e um DJ durante a peça - Foto: Jorge Martins

Jé Oliveira é acompanhado por quatro músicos e um DJ durante a peça – Foto: Jorge Martins

Tal qual o ator, em entrega próxima ao êxtase, estão presentes e em diálogo minucioso com o texto o baixista Cássio Martins, o percussionista e baterista Fernando Alabê, o pianista Mauá Martins, também no MPC, e o guitarrista, violonista e vocalista Melvin Santhana, dono de um irresistível charme.

Ainda completam o time dois DJs que se alternam nas apresentações: DJy Voktila e KL Jay, este último o DJ do lendário grupo Racionais Mc’s, fonte de inspiração confessa no palco por Jé Oliveira. Visto por este crítico em performance intensa e propositiva ao espetáculo, KL Jay, assim como os demais artistas, demonstrou estar em consonância com o discurso político da peça.

Em Farinha com Açúcar, o Coletivo Negro legitima no palco o homem que só costuma ganhar holofote nas páginas policiais. E esta proposta de tirar o negro do estereótipo é reconhecida por esta parcela social.

Na sessão vista por este crítico, último dia de apresentação no Teatro do Sesc Pompeia, lugar tradicionalmente pertencente a uma juventude “classe média branca paulistana alternativa”, o lugar estava tomado por um público majoritariamente negro e vindo das periferias da cidade, todos em identificação profunda com a obra, manifestada pelas intervenções eufóricas de alguns espectadores durante as cenas.

Esta virtude o Coletivo Negro tem: ressignificar artisticamente esta parcela da população, utilizando o teatro como propulsor de novos diálogos e visões de mundo, menos racistas e mais inclusivas.

Assim, os corpos negros, geralmente tensos em ambientes comumente pertencentes às classes privilegiadas, estavam relaxados e se movimentava no ritmo das falas e das músicas propostas pela montagem durante a sessão.

KL Jay, dos Racionais MC's, participa de Farinha com Açúcar - Foto: Jorge Martins/Divulgação

KL Jay, dos Racionais MC’s, participa de Farinha com Açúcar – Foto: Jorge Martins/Divulgação

Contudo, se possui tal mérito, Farinha com Açúcar comete uma ausência em seu discurso que é sentida. Ao abarcar a periferia e suas relações sociais partindo do masculino, apresenta uma visão do masculino atrelada à heterossexualidade, não dando espaço ao homem negro e gay. E esta é uma limitação da obra.

Seria interessante e vigoroso para o espetáculo abarcar também em discurso cênico o homem negro homossexual, oprimido não só pela sociedade, como também, muitas vezes, pelo homem negro heterossexual, vivendo a opressão de seus pares periféricos.

Apresentar tais contradições do homem negro heterossexual, oprimido, mas também opressor, sobretudo em relação a mulheres e gays, teria feito a obra crescer e demonstraria uma visão mais abrangente e inclusiva do masculino.

Cenografia reproduz barracos da periferia paulistana em Farinha com Açúcar - Foto: Jorge Martins

Cenografia reproduz barracos da periferia paulistana em Farinha com Açúcar – Foto: Jorge Martins

Apesar desta pontuação, a obra consegue quebrar alguns paradigmas e propor novas visões, dando voz no palco a quem geralmente este espaço é negado.

E, se a peça dialoga profundamente com quem já comeu farinha com açúcar para aplacar a fome em alguma periferia deste nosso Brasil, caso também deste crítico, ela tenta trazer esta experiência sensorial, mesmo que de forma poetizada, a quem a desconhece, quando Jé Oliveira compartilha o alimento que dá título à peça com seu público.

É com este gosto na boca que o espectador vê Farinha com Açúcar se tornar o grito libertário de quem chegou a duras penas a um mundo que lhe foi negado. E que demonstra ainda que abrir mão de tais conquistas não faz parte do plano. Muito pelo contrário, o povo negro, cada vez mais conscientizado, quer mais.

Quem viveu de privilégios escravocratas nos últimos 500 anos de Brasil que se cuide. Não será fácil colocar os negros novamente na senzala social. Eles estão dispostos a tudo por novos alimentos, novas sustanças, sem, contudo, abrir mão da farinha com açúcar que os forjaram.

Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens * * * *
Avaliação:
Muito bom
Quando: Quinta a sábado, 21h, domingo, 20h. Até 17/04/2015
Onde: Funarte – Alameda Nothmann, 1058, metrô Santa Cecília, São Paulo – Tel. 11 3662-5177
Quanto: Grátis
Classificação etária: 16 anos

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2 Resultados

  1. Phillipe disse:

    Já comi farinha com açúcar, mas não diria que foi por passar fome. Comi porque havia um costume entre as crianças da região.
    Quanto à crítica, irretocável, inclusive em relação à observação sobre o negro heterossexual em relação ao negro homossexual. Parabéns pela crítica atenta!

    • Regina disse:

      A peça me marcou muito! A identificacao, uma dramaturgia diferente que traz uma fala-depoimento que concretiza a ficção e materializa o impalpável! Mas é interessante a questão no negro e da sexualidade… A homossexualidade não ser uma escolha nem por menção revela algo ainda difícil de se abordar.
      Eu particularmente senti falta da mulher, da relação com a mulher! A inegável figura das genitoras é forte e marcante, mas é a irmã, parceira, amante? Como se dá esse momento? O amor? Como as veem? As protegem, as valorizam? As respeitam? A tentativa de conseguir um encontro o personagem/homem de Jé omite a etnia para encontrar uma mulher que não sairia com um negro nem periférico, revela a busca desse homem ser querido e a necessidade negra de ascensão e aceitação, outra menção vem na descoberta sexual com um suave descrição sensorial do ato mas se resume a isso é posso dizer como mulher negra, periférica que fiquei tomada mas senti falta desse tema melhor tratado ou mencionado!

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