Crítica: Espanca poetiza e questiona violência de hoje em “Real”
Por Miguel Arcanjo Prado
Enviado especial a Belo Horizonte (MG)*
O mundo anda complicado. E o Brasil, ainda mais. O Grupo Espanca!, com trajetória de mais de uma década em Belo Horizonte, parece saber disso ao lançar olhar ferino e poético para a violência cotidiana que nos assombra diariamente, em seu espetáculo “Real”, apresentado dentro da programação da 13ª edição do FIT-BH (Festival Internacional de Teatro, Palco & Rua de Belo Horizonte).
Em busca de um diálogo com o teatro de seu tempo, o Espanca! convocou quatro diferentes dramaturgos para escreverem sobre fatos recentes que chocaram a sociedade brasileira, formando quatro peças curtas distintas, encenadas em sequência sob direção eclética de Gustavo Bones e Marcelo Castro — estes homenageiam as linguagens dos próprios dramaturgos em suas companhias de origem com cada uma das cenas.
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Tudo começa com “Inquérito”, de Diogo Liberano, com olhar ácido para uma família atormentada pelo fantasma da mãe que foi linchada de forma gratuita, em referência ao caso de Fabiane de Jesus, linchada no Guarujá (SP), após a população achar, de forma equivocada, que ela seria uma acusada de envolver crianças em supostos rituais de magia negra. A encenação expõe o absurdo da violência que afeta aquela família, que fica sem respostas para um ato tão selvagem e indigerível.
A esta segue-se “O Todo e as Partes”, texto absurdo de Roberto Alvim, inspirado no caso do ciclista David Santos Sousa, que foi perdeu um braço no atropelamento, braço este atirado pelo motorista Alex Kozloff Siwek, que não prestou socorro, em um córrego. Esta encenação homenageia o teatro que Alvim desenvolve no Club Noir em São Paulo, com forte presença do texto e da voz dos artistas, em uma atmosfera densa favorecida pela penumbra. É um dos melhores momentos de “Real”.
A greve dos garis cariocas de 2014 inspirou “Parada Serpentina”, de Byron O’Neill, que ganha uma encenação vigorosa e carioquíssima, repleta de corpos e do ritmo frenético do funk, em uma espécie de greve carnavalesca. A montagem se encerra com “Maré”, de Marcio Abreu, sobre duro o enfrentamento entre policiais e traficantes na favela carioca Complexo da Maré.
Chama a atenção o fato de o Espanca!, com um discurso político de diálogo com a sua cidade, sobretudo após a instalação de sua sede na região do Viaduto de Santa Tereza, no centro de Belo Horizonte, não ter escolhido nenhum tema mineiro dentro dos quatro eleitos para a dramaturgia de “Real”. O caso do goleiro Bruno e a morte misteriosa de sua ex-namorada Eliza Samudio, que se desenrolou na capital mineira com os holofotes da mídia nacional, poderia ter sido uma boa pedida que fugisse de temática apenas oriundas do eixo Rio-São Paulo.
“Real” é uma experiência múltipla e eclética de leituras cênicas possíveis, mas que chegam em um ponto só: o horror da bestialidade da violência contemporânea, que não podemos aceitar. Com esta obra, o teatro político do Espanca! questiona e repensa nossa selvageria, desvendando o valor da vida, imerso nesta névoa turva do cruel mundo de hoje.
*O jornalista Miguel Arcanjo Prado viajou a convite do FIT-BH.
“Real” * * * *
Avaliação: Muito bom