Do ser-tão teatral argentino ou Los Hombres Vuelven al Monte, por Léo Kildare Louback
Por LÉO KILDARE LOUBACK
Especial de Buenos Aires, Argentina
Em algum teatro do mundo alguém estará contando a mesma história da sua vida, ignorando as geografias que vemos e por vezes nos separam e abrindo a cartografia da saudade, que se expande mesclando todos os lados. E o que passa é outro mundo que bem podia ser o nosso.
Por algum motivo desconhecido, místico ou casual, nos palcos de Buenos Aires um homem solitário parece sair de um conto de Guimarães Rosa, de um sertão argentino sem água e cheio de pessoas pegando fogo.
Aqui, de um só corpo presente se manifestam vários outros, ausentes, que a guerra mata, desaparece ou enlouquece. Ali, mirando-nos, está um homem de vida em aparente irrelevância, que vai ao monte esperar passar o pai desaparecido. Lá do alto, quente e seco, esse filho se acostuma a esperar que volte o pai, cada dia mais passado.
A peça “Los Hombres Vuelven al Monte” (Os homens voltam ao monte, em tradução literal), do dramaturgo e diretor argentino Fabian Diaz, calorosamente exaltada pela crítica de seu país, foi a ganhadora do prêmio do Instituto Nacional do Teatro em 2012 e estreou em 2014.
Desde então, esgota lugares em suas plateias e nos presenteia em longas temporadas a doçura violenta de H, que ao prender fogo, nos queima em fagulhas, que estilhaçam como uma música que o teatro raramente toca.
“Quando um feito afeta o espírito com tanta força, vale a pena parar e pensar nele”, escutamos em algum momento. O monólogo de tantas vozes é um convite a parar, sentar e escutar, embarcar nesse “vou chorar ou por aí me rio” para então abrir os olhos e ver o sol ardendo na pele desse senhor com barriga de chope e cara do meu avô, que dá corpo a tanta gente morta, viva, esquecida.
Há uma melodia que o ator canta e conta desenfreadamente. Uma mente desenfreada que conta morte e finais não felizes, em uma atmosfera de “Vidas Secas”, onde a cadela Baleia de Graciliano Ramos poderia facilmente ser comparada com o guazuncho, “mistura de veado, cachorro e canguru”, importante coadjuvante no texto, ambos animais “grávidos” dessas famílias que se vão despedaçando no caminho, no tempo.
O que acontece no espaço à nossa frente é um feito poderoso, onde se convergem a literatura escrita e a poeticidade que pode ter a fala de um homem sem gramáticas. Há um ritmo, um tempo poético que o texto estabelece, primorosamente contado pelo veterano ator Iván Moschner.
Ele fala rápido, com sotaque interiorano, quase um mineiro do Vale do Jequitinhonha. Pelo primoroso e rigoroso trabalho ele recebeu o Prêmio Teatro del Mundo 2015 y foi indicado para os prêmios María Guerrero e Trinidad Guevara.
Recentemente este que vos escreve teve o prazer de se apresentar junto com esse artista na programação do Festival Efimero de Teatro Independiente, iniciativa louvável de jovens artistas de Buenos Aires que movimentaram a cena teatral da cidade em julho.
Fabian Díaz, o mais novo da relação, é diretor, dramaturgo, docente licenciado em Atuação e Mestre em Dramaturgia pela Universidad Nacional de Las Artes. Dirigiu “Pequeño Casamiento“, de Luis Cano, “El Feo“, de Marious Von Mayemburg, além de haver trabalhado com Guillermo Cacace no Teatro Nacional Cervantes e no Complejo Teatral San Martín.
Entre seus projetos futuros estão a estreia de “Amar Amar Amar”, outro texto seu, a “Conferência Perfórmática sobre a Operación Cóndor en América Latina” a partir da “Estrella Distante”, de Roberto Bolaño e a estreia ainda em 2016 de “BESO”, projeto teatral com um elenco da cidade de Resistencia, na provincia argentina de Chaco, onde nasceu.
Quando revelou-me isso isso há alguns dias, Fabian, que insisto em chamar de Damian, ainda não sabia que estava entre os cinco argentinos escolhidos pelo Royal Court Theatre (Inglaterra) para seus renomados Talleres de Dramaturgia na América Latina. Também não podia saber que o filme “El Corredor”, dirigido por Federico Schmukler e Gonzalo Moncalvillo, com ele em cena e cujo texto escreveu, acaba de ser seleccionado para o 23º Festival de Cine Latinoamericano de Rosario. Quem segura esse menino?
“Mi padre está preñado, con el cuerpo en carne viva, una hembra ensangrentada”, assim são os homens que voltam ao monte: jovens Damianes de mãos dadas com vividos Ivánes, que se deixam carregar dentro para nos conduzir de novo pelas histórias que nos contaram nossos antepassados e que, sem perceber, esquecemos.
*LÉO KILDARE LOUBACK é ator, diretor dramaturgo, tradutor e professor de alemão, espanhol e português. Formado em Letras pela UFMG e com pós graduação em Arte da Performance pela Faculdade Angel Viana. Traduziu o livro “Raízes e Sementes: Mestres e Caminhos no Teatro da América Latina”, do diretor do Grupo Cultural Yuyachkani, Miguel Rubio Zapata. Atualmente vive no Uruguai, onde dirige a versão do seu texto “Leve Cicatriz”. Fundador da produtora MartesNueve, com o argentino Patricio Ruiz, atualmente co-produz a obra “Cabalgar” no Teatro Solis de Montevidéu.
Quando: Sábado, 19h
Onde: Apacheta Sala Estudio – Pasco 623, Buenos Aires, Argentina, inf: +54 11 4943-7900 e +54 11 3014-2997