Crítica: Com duas estrelas potentes, “Wicked” questiona discursos prontos
Por Miguel Arcanjo Prado
Quem são os bons e os maus da história? É bem provável que aqueles que se vendem como salvadores da pátria sejam os verdadeiros leões que querem nos devorar. Subverter a lógica de um discurso já pronto e virá-lo pelo avesso é o grande mérito do musical “Wicked”, em cartaz em São Paulo e que prova que entretenimento pode combinar com inteligência.
Escrito em 1995 por Gregory Maguire e produzido para a Broadway em 2003, depois foi encenado em mais de cem cidades de 13 países e visto por 50 milhões de pessoas. O enredo volta à Terra de Oz, do clássico infantil “O Mágico de Oz”, para explicar a origem daqueles personagens que encantaram e assombraram a garotinha Dorothy, imortalizada no cinema por Judy Garland em 1939.
As protagonistas são duas jovens bruxas aprendizes: Elphaba, papel de Myra Ruiz, e Glinda, personagem de Fabi Bang. Enquanto a primeira sofre com o preconceito dos outros por ter nascido com a pele verde esmeralda e, portanto, ser diferente, a segunda é a queridinha de todos, loirinha, mimada e “perfeitinha”.
Ao colocarem ambas para dividir o mesmo quarto na universidade, o musical aponta um olhar inclusivo: incentiva que os diferentes devem conviver e se aproximar. E mostra que a amizade e o respeito mútuo são infinitamente mais valorosos do que o ódio e o rancor competitivo.
Mas logo, para dar caldo à história, ambas enveredam pelo caminho da rivalidade, despontada por um amor em comum, o príncipe Fiyero, papel de um correto Jonas Faro.
Como é de praxe neste tipo de superprodução, tudo é feito para impressionar a plateia, o que vão desde os efeitos de luz hipnotizantes, o cenário impactante (com direito a um dragão gigante no teto), os bem coreografados números dançantes e o palco constantemente povoado por 34 atores-cantores-bailarinos ao som da música executada por 14 instrumentistas sob batuta da maestrina Vânia Pajares.
Mas a competente direção da norte-americana Lisa Leguillou e da brasileira Rachel Ripani consegue, mesmo diante de toda pirotecnia, focar na forte relação cênica que as duas protagonistas conseguem instaurar.
Apesar de envoltas por um elenco afinadíssimo, as duas protagonizas captam a todo instante a atenção do público para ambas, cada uma com construção impecável de sua personagem. Myra Ruiz alia técnica à verdade cênica com sua Elphaba, espécie de adolescente desajeitada que tenta encaixar-se no mundo até descobrir que isso não é algo tão bom assim e que ter personalidade própria pode ser libertador.
Fabi Bang demonstra forte maturidade como atriz ao conseguir brincar o tempo todo com sua Glinda, fazendo a plateia divertir-se. Ela faz a garota fútil, mas não menos inteligente por isso. Como uma pitada de teatro épico-dialético proposto por Brecht, há na atuação de Fabi uma opinião da atriz sobre sua personagem, colocada de forma sutil, mas marcante. É isso que faz o público refletir, pensar. E, claro, ambas cantam lindamente, atingindo notas praticamente inalcançáveis pelos pobres mortais.
Talvez a grande mensagem de “Wicked” esteja condensada no personagem Doutor Dillamond, professor de Elphaba e Glinda defendido de forma pungente por César Mello: ele, um bode, é violentamente tirado de seu posto profissional por, simplesmente, ser diferente dos demais, por ensinar os alunos a pensar, a questionar.
Como o professor fala algo que o sistema estabelecido não quer ouvir, logo é preso e silenciado. Para que, assim, prevaleça o discurso dos vitoriosos, que insistem em proclamar que são o lado bom da história. Por mais que isso seja uma grande farsa.
O horror que passa a Dillamond está longe de ser uma ficção distante e dialoga de forma veemente com o Brasil atual, com seu projeto de “Escola sem Partido” que pretende instaurar um modelo de cerceamento da liberdade de pensamento no ambiente escolar.
Assim como em “Cabaret”, com sua feroz crítica ao nazi-fascismo, o musical “Wicked” tem o grande mérito de questionar o mundo e os discursos estabelecidos como verdades, utilizando o próprio entretenimento como proposta para um novo pensamento: questionador e inclusivo. Porque quem não pensa segue como vaca rumo ao matadouro, repetindo discursos prontos e perversos feitos por outros.
“Wicked” * * * *
Avaliação: Muito Bom
Quando: Quinta e sexta, 21h. Sábado, 16h e 21h, domingo, 15h e 20h. 175 min. Até 18/12/2016
Onde: Teatro Renault – Av. Brigadeiro Luís Antônio, 411, Bela Vista, São Paulo, tel. 11 4003-5588
Quanto: R$ 50 a R$ 280
Classificação etária: 12 anos
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