Palhaços buscam sobreviver com arte e amor do público
Por Miguel Arcanjo Prado
A morte do ator e protagonista da novela “Velho Chico” Domingos Montagner, aos 54 anos, afogado no rio São Francisco, no último dia 15, descortinou para muita gente sua outra profissão, que exerceu por muitos anos antes de atuar na televisão e nela continuou mesmo alçado ao posto de galã: palhaço. Montagner era diretor artístico do Circo Zanni e também membro da companhia La Mínima, com o também palhaço Fernando Sampaio.
Quando se fala nesta profissão, ainda vítima de muito preconceito social, muitos têm a ideia dos palhaços famosos da TV, como Patati & Patatá, Bozo ou Atchin & Espirro, mas se esquecem dos milhares de palhaços que sobrevivem de sua arte em ruas e apresentações em escolas e festivais Brasil afora. Fora dos grandes circos, cada vez mais raros, eles gerenciam suas próprias carreiras de forma independente.
E eles são muitos, como levantou Mario Bolognesi, pesquisador e professor do Instituto de Artes da Unesp (Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”) em seu livro “Palhaços”, no qual descortina a prática profissional nos rincões do país. A obra mostra que os palhaços do Brasil atuam de forma aguerrida aliando arte e sobrevivência, como fazia o próprio Montagner antes da fama na TV.
E como faz o mineiro Miguel Safe, que há 13 anos dá vida ao palhaço Bambulino. Assim como seus colegas, ele sentiu a morte de Montagner: “Foi uma notícia triste, e a classe tem feito diversas homenagens a ele em apresentações. Particularmente, acho que a vida é a mensagem que fica para a história. E ele deixou seu exemplo e marca para a posteridade”.
Safe conta ser influenciado por nomes como Esio Magalhães, Falcão, Os Trapalhões, Tortel Poltrona, Chaplin e Philippe Gaulier — este último já disse certa vez a este repórter que “gente séria é muito perigosa”. E complementa lembrando que “palhaço bom é palhaço velho”, o que faz desta profissão amiga da passagem do tempo.
“Sou palhaço por amar me divertir com meu público ridículo, sendo cúmplice com o público a cada momento e reagindo verdadeiramente aos seus estímulos”, diz Safe. Para o artista, a arte do palhaço “desperta afetos em uma sociedade anestesiada” e com “visões tão superficiais, artificiais e fundamentalistas que muitos se assemelham mais a zumbis teleguiados do que a seres integrais e autoconscientes”.
É por apresentar outra leitura possível da vida, mais poética que nosso duro cotidiano, que o palhaço marca tanto. “O palhaço é um doador de si mesmo. O importante é ser sincero e humilde na lida”, fala Safe.
Palhaço preso
O paranaense Leonides Quadra, o palhaço Tico Bonito, também é outro nome emblemático na nova geração de clowns brasileiros. Ele concorda com Safe. “O bom palhaço tem de ser generoso e aceitar que o público traz coisas construtivas”, pontua.
Ele, que está na cena desde 2003, chegou a ser preso em 2015 pela PM de Cascavel, no Paraná, quando policiais não gostaram das críticas contidas à polícia na fala de uma de suas apresentações de rua no festival de teatro da cidade.
A prisão repercutiu internacionalmente, já que feriu a liberdade de expressão artística garantida na Constituição. “Estava em cena quando fui preso. E usei a prisão como cena para questionar aquilo. O meu sapato de palhaço não permitia que o camburão se fechasse. As pessoas riram daquela situação cômica que saiu daquele momento trágico. O palhaço não deixa de ser palhaço nem nos momentos críticos de sua vida”, fala.
Sobrevivência
Quadra conta que sobrevive basicamente do chapéu de suas apresentações na rua, e também de cachês que recebe de escolas e festivais. Foi exatamente por ver o grupo Rosa dos Ventos encantar o público e passar o chapéu ao fim que resolveu ser palhaço.
“Aquela forma de espetáculo, sem cobrança de ingresso, passando o chapéu no final, contando com a generosidade sincera do público, me chamou a atenção”, conta. “Sou palhaço para me encontrar com a generosidade do ser humano. Por isso gosto de trabalhar na rua, fazendo com quem não tenha acesso à arte consiga assistir e contribuir com o que puder”, conta.
Mesmo assim, diz que a sobrevivência ainda é complicada e lembra que os palhaços precisam lidar com o olhar torto de muita gente.
“Há muito preconceito com o palhaço, principalmente o palhaço de rua, porque somos uma quebra no sistema, nesse conceito de arte glamourizada. Muita gente pensa que os atores da Globo é que são os grandes artistas, se você não está na Globo você não é um grande artista. Mas a nossa intenção é fazer nosso trabalho. Pelo fato de não estarmos na grande mídia, há um preconceito de que não seríamos bons, como se ser bom fosse estar na Globo. É um pensamento equivocado”, lembra.
“E muitos entendem que passar o chapéu é pedir dinheiro, esmola. Não se trata disso, é uma contribuição pelo meu trabalho. O palhaço é um trabalhador como outro qualquer”, fala.
Quadra lembra que Montagner tinha uma importância enorme para a classe, já que ajudou a projetar e a valorizar a profissão ao estar também, nos últimos anos, na TV. “Demorou a cair a ficha de que ele morreu. O trabalho dele era fantástico, ele tinha muita qualidade e presença de cena. Poderia ser uma grande piada e ele estar vivo. Seria muito bom para todos nós”, lamenta.
Lado frágil e vulnerável
O paulistano Kleber Brianez, intérprete do palhaço Nérdolino e estudioso da linguagem desde 1998, concorda. Integrante do Grupo Esparrama, revela que teve grandes mestres como Bete Dorgam, Esio Magalhães, Cristiane Paoli-Quito e Philippe Gaulier.
“Ser palhaço exige muito trabalho, não é só colocar uma roupa engraçada, um nariz e saber contar piada. É preciso escolher o humor de maneira inteligente, falar sobre um sistema, fazer uma denúncia, tocar em pontos delicados da sociedade”, afirma.
“O palhaço aproxima, nos coloca em contato com nosso lado mais frágil, mais vulnerável, mais humano. Estudar essa linguagem é seguir um caminho em direção a você mesmo”, conclui.
Siga Miguel Arcanjo Prado no Facebook, no Twitter e no Instagram.