Crítica: Peça fruto de protesto negro na MITsp tem discurso enfraquecido
Por Miguel Arcanjo Prado
Fotos Nereu Jr.
Quem viu a performance Em Legítima Defesa na inesquecível noite de 4 de março de 2016 sabe exatamente qual foi o impacto provocado sobre o público que estava na Sala Jardel Filho do Centro Cultural São Paulo.
Os espectadores haviam acabado de assistir ao intimista recital Revolting Music – Inventário das Canções de Protesto que Libertaram a África do Sul, do músico sul-africano Neo Muyanga, e estavam ainda sensibilizados pelas músicas que falavam da dor do Apartheid, regime racista separatista de Estado que vigorou na África do Sul entre 1948 e 1994, quando viram os corredores do teatro serem arrebatados por um grupo potente de artistas negros ao som dos versos “A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras”, de Capítulo 4, Versículo 3 do grupo Racionais MC’s.
O som ensurdecedor de bombas e aquela visão arrebatadora, praticamente um levante negro, paralisou a plateia. Tratava-se, sem sombra de dúvidas, de um enfrentamento. Logo, aqueles artistas negros deram início a um discurso que desvelou o racismo institucionalizado na sociedade brasileira, presente inclusive nos campos ditos progressistas da cultura e também naquela plateia na qual negros podiam ser contados nos dedos da mão.
Questionaram não só a morte de negros pelo Estado, como também sua ausência nos palcos e nas plateias de teatro, e a indiferença de muitos brancos para a questão negra. Ao fim, de punhos cerrados, os atores se posicionaram ao fundo do teatro, muitos com lágrimas escorrendo pela face, e uma expressão de dignidade e dor ao mesmo tempo, no que foram seguidos pelos poucos negros presentes na plateia e raros brancos, naquela que foi uma das performances mais impactantes da história do teatro brasileiro recente.
Se na MITsp 2016 aqueles negros brasileiros ocuparam os corredores em protesto, nesta edição de 2017 parte deles conseguiu conquistar o palco nobre do Auditório Ibirapuera e a programação oficial de espetáculos legitimada pela curadoria. Ainda sob direção de Eugênio Lima, o mesmo da performance Em Legítima Defesa, apresentam a peça A Missão em Fragmentos: 12 cenas de descolonização em legítima defesa.
Para quem viu a potente performance-protesto do ano passado, a sensação é de susto e desconforto. Sobretudo porque há um gritante descompasso entre forma e conteúdo na questão apresentada, que agora surge dilatada, embalada por uma suposta ideia de sofisticação europeia teatral e bem menos potente. O discurso, antes de confronto misturado a um pedido de socorro, agora está mais condescendente. Um letreiro ao fundo do palco diz o tempo inteiro a seguinte falácia: “Somos todxs negrxs”. Não, não somos. E o racismo só começa a ser combatido de fato quando enxergamos as diferenças que existem entre negros e brancos em nossa sociedade e passarmos a nos respeitar uns aos outros de forma equânime em oportunidades e tratamentos, o que está longe de acontecer.
A peça traz no título a palavra “descolonização” e utiliza em sua forma justamente as premissas do teatro pós-dramático europeu, seguindo à risca a cartilha do alemão Hans Thies Lehman. Também parte de uma base alemã para construir sua fragmentada dramaturgia, inspirada em A Missão – Lembranças de Uma Revolução, de Heiner Müller. Isso sem falar na gritante ausência da percussão na banda, em detrimento da guitarra, do sopro e do piano de cauda.
Em um país no qual o movimento negro está em ebulição, buscando justamente criar seus próprios discursos e referências e que dialogue diretamente com suas especificidades, chama atenção o fato de o espetáculo tentar reproduzir uma forma estética legitimada pela cultura europeia, que a própria peça critica nominalmente, o que gera um confronto entre forma e conteúdo. Por que, para falar de negritude, é preciso ir a uma revolta de escravos na Jamaica contada pelo alemão e branco Heiner Müller? Não há no Brasil e na intelectualidade negra contemporânea brasileira possibilidades de criação dramatúrgica que falem das questões intrínsecas ao negro no país?
Sobretudo, porque a cidade de São Paulo, assim como o Brasil, vive uma ebulição das questões negras. Basta, por exemplo, frequentar lugares como a Aparelha Luzia, centro cultural negro paulistano, ou ver espetáculos de grupos como Os Crespos e Coletivo Negro, para começar a entender a magnitude da questão negra no Brasil contemporâneo, que busca fugir justamente da ingerência de premissas brancas colonizadoras.
O mesmo sul-africano Neo Muyanga que viu sua plateia ser tomada pelos artistas negros em 2016 e buscava com o intérprete da produção entender o que estava acontecendo, agora está ali no palco em A Missão, como apenas mais um músico, tão pouco aproveitado, desperdiçando um rico diálogo entre o racismo na África do Sul e o do Brasil.
A sensação ao término da peça é de atordoamento diante da cooptação. Se em 2016 o discurso era potente justamente por reivindicar um lugar de fala para o negro brasileiro na programação da MITsp, um ano depois, quando este espaço é conquistado, o espetáculo não assume em primeira pessoa a efervescente questão negra brasileira. Opta por referências estrangeiras, distantes e até brancas, como se para justificar sua presença em cena isso fosse necessário. É uma pena ver desperdiçado um espaço tão significativo e que poderia ter sido lugar de empoderamento e de discussão da urgente questão da negritude no Brasil.
A Missão em Fragmentos: 12 Cenas de Descolonização em Legítima Defesa * *
Avaliação: Regular