Após polêmica de racismo, diretores cortam cenas da peça Branco
Por Miguel Arcanjo Prado
Os diretores Alexandre Dal Farra e Janaina Leite cortaram cenas do espetáculo “Branco: O Cheiro do Lírio e do Formol”, escrito por Dal Farra e em cartaz no Centro Cultural São Paulo (CCSP), em São Paulo.
A decisão pelos cortes foi tomada após a obra receber acusações de racismo de espectadores negros e brancos. O espetáculo, apenas com artistas brancos, afirma pretender discutir o racismo.
O Blog do Arcanjo do UOL assistiu à peça apresentada na 4ª MITsp (Mostra Internacional de Teatro de São Paulo), em março, e reviu a montagem no último dia 15 de abril, quando verificou a ausência de algumas das cenas mais polêmicas da peça.
Um das cenas cortadas é aquela na qual um dos atores, branco, interpretava um personagem negro, no meio do público, enquanto outro ator, também branco e no meio da plateia, falava sobre o fato de o negro se “vestir bem” — a lógica era que o negro, ao “se vestir bem”, buscava uma forma de atenuar sua negritude e tentar escapar do racismo, na visão apresentada pelo espetáculo.
Outra cena que deixou a montagem é aquela na qual o dramaturgo mostrava em um telão uma irônica conversa imaginária que teria com um dos “provocadores” da peça, artistas negros convocados pela direção de “Branco” para dar sua opinião sobre o espetáculo durante o processo criativo do mesmo – opiniões estas que o dramaturgo confessa em cena não ter acatado, já que os negros ouvidos disseram que a peça era racista, e ela foi montada mesmo assim.
Durante bate-papo com o público ao fim da sessão no último dia 15, os diretores foram questionados por que cortaram tais cenas. Responderam que isso ocorreu após reflexão do grupo, advinda do retorno dado pelo público e pela crítica, citando inclusive a crítica sobre o espetáculo publicada pelo Blog do Arcanjo do UOL. Dal Farra e Leite também afirmaram que a peça “vem mudando todos os dias”.
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Apartheid e whiteface
Durante a peça “Branco”, o texto diz que “dividir a plateia entre brancos e negros era uma das ideias” iniciais da obra — o que seria uma espécie de apartheid revisitado, ideia depois abandonada pela trupe.
Falando em segregação, durante um dos bate-papos com o público em abril, um espectador branco sugeriu que “Branco” devesse ser assistida apenas por brancos, “pois os negros já sabiam de racismo e o tema precisava ser discutido apenas entre os brancos”, falou o homem, gerando revolta nos espectadores negros presentes, como apurou o UOL.
Na sessão no CCSP que o Blog do Arcanjo do UOL esteve no último dia 15, outro espectador, que se definiu no microfone como branco, afirmou que “era uma peça de brancos para brancos com dinheiro público” e que a montagem só “forçava as divisões”.
Em cena da peça, ao tentar justificar porque a obra só tem artistas brancos, Dal Farra admite, lendo um texto no microfone: “Não fomos capazes de fazer a peça com os parceiros negros e parceiras negras”. E vai além, ao questionar, ainda em cena: “Será que estamos prontos para fazer algo juntos?”, o que soa, por mais que o diretor afirme não ter tido essa intenção, um incentivo à segregação nos palcos.
Um espectador perguntou ainda por que os atores faziam uma espécie de whiteface, ao pintar os rostos de tinta branca em cena. Dal Farra afirmou que fazer um whiteface não era o sentido pensado, no que Leite disse que estavam em busca apenas “de uma máscara”.
Mesmo com toda a polêmica nos últimos tempos no teatro brasileiro em relação ao blackface, prática racista na qual um ator branco pinta o rosto de preto para interpretar um personagem negro de forma estereotipada, os artistas mantiveram a fala de que não pensaram nesta possível interpretação: de que o whiteface, em uma peça que tem o racismo como tema, pudesse ser enxergado como uma provocação irônica direcionada aos negros.
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Pai do autor não morreu de câncer, como diz a peça
No bate-papo com o público no dia 15 de abril, outro assunto que causou polêmica foi a revelação de que o pai do autor não morreu de câncer durante o processo de construção da peça, como é contado na encenação.
Questionado pela reportagem, Alexandre Dal Farra confirmou que seu pai está vivo e que a morte do pai na peça “é ficção”. Segundo Janaína Leite, trata-se de uma metáfora para o que seria “a morte do pai branco”.
Boa parte do público presente se manifestou, dizendo que isso não ficava claro na obra.
Um espectador falou que parecia mais que o dramaturgo, ao “inventar um pai morto”, queria “se colocar em um lugar de vítima”, desviando a atenção do público do tema central que a obra afirma pretender discutir: o racismo.
Outro espectador sugeriu que o bate-papo ao fim da peça seria parte da encenação e que tanto diretores quanto atores estariam representando mesmo após o fim da peça, o que foi negado pelos artistas.
Crítica favorável a “Branco” é distribuída ao público na entrada da peça
Ainda durante o bate-papo, uma espectadora questionou aos diretores “um privilégio” do espetáculo “Branco”: o fato de ocupar o horário nobre do CCSP, de sexta a domingo, enquanto que a peça “A Missão em Fragmentos”, feita por artistas negros e também com a temática racial, está em cartaz às terças e quartas. “Esta decisão não foi nossa, foi do Centro Cultural São Paulo”, respondeu Dal Farra.
A reportagem também verificou que é entregue ao público antes de a peça começar, impressa, apenas uma crítica ao espetáculo, elogiosa à montagem, feita por um crítico branco — e escrita no contexto da MITsp, quando a peça ainda não havia sido modificada.
Se os artistas afirmam no começo da obra querer escutar o negro, por que o papel entregue não traz também alguma crítica à obra escrita por algum crítico negro?, questionou a reportagem.
Gabriela Elias, produtora de “Branco”, presente no debate ao lado de Dal Farra e Leite, afirmou que a decisão de entregar impressa a apenas uma crítica “não partiu do grupo, mas da direção do Centro Cultural São Paulo”.
Apesar de escolher imprimir para o público só uma visão crítica à obra, a direção do CCSP disponibiliza em um hotsite todos os textos críticos sobre “Branco” feitos até o momento.
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