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Crítica: Não estar é a única forma de presença de negros – e a culpa não é nossa

Os atores da peça “Branco: O Cheiro do Lírio e do Formol” surgem bronzeados nas fotos de divulgação do espetáculo – Foto: André Cherri

Por Stephanie Ribeiro*
Crítica convidada

O espetáculo “Branco: O Cheiro do Lírio e do Formol”, com roteiro assinado por Alexandre Dal Farra e direção do próprio dramaturgo e de Janaina Leite – uma das atrizes da peça ao lado de André Capuano e Clayton Mariano -, foi uma grande surpresa para mim e não há palavra rebuscada que justifique a minha sensação de revolta. Eu realmente não imaginava que a MITsp (Mostra Internacional de Teatro de São Paulo) e o Centro Cultural São Paulo (CCSP) destinariam verba e espaço para uma peça sobre branquitude, caso ela realmente não tratasse desse tema de forma lúcida.

Sendo assim existe um erro de curadoria e roteiro na tal peça, exatamente por partir de uma visão que desconhece a forma como raça atua nos sujeitos e na estrutura. É fato que falar de branquitude não é fácil, mas pessoas negras e brancas discutem esse tema de forma muito rica há muito tempo, e constantemente negros debatem o impacto do racismo em suas vidas e, consequentemente, os privilégios da branquitude. Só que, exatamente por racismo ser estrutural, é mais fácil escutar e aplaudir um branco que fala de forma rasa de seus privilégios, do que ceder espaço para negros.

A peça “Branco: O Cheiro do Lírio e do Formol” deixa evidente que não houve uma análise profunda sobre o tema que pretendiam analisar. Arte é sim uma forma de questionar a sociedade, mas sabemos que nem sempre esses questionamentos são certeiros. Nesse espetáculo tudo caiu num verdadeiro “branco drama” que incomoda qualquer negro racialmente educado em relação a nossa estrutura racista. Se tirarmos toda estética, jogo de luz e até mesmo o cenários onde peles de animais vão sendo pisadas ao longo do espetáculo, o que sobraria?

Um erro racista

Tem diálogos na peça que deixam brechas e associam o movimento negro a linchamento e atitudes ditatoriais, não adianta então gritar: Brancos são Racistas. Se nas entrelinhas o bom branco brasileiro escuta o que quer e vai assimilar conforme a defesa dos seus privilégios. A forma como o roteiro é escrito é portanto um ERRO. Um erro racista. E não teria como não ser dado que para a desconstrução no campo artístico é necessário um trabalho coletivo de aprendizado e protagonismo, e a peça em questão contou apenas com roteiristas e diretores brancos.

Sendo assim, a composição do roteiro não fala ao meu ver sobre racismo e seus impactos negativos e segregacionistas, e sim sobre a aflições do sujeito branco racista em tentar mostrar que não é racista sem perder seu local de privilégio e protagonismo na dor. Uma das personagens brancas dessa narrativa relata ter sofrido assédio sexual de uma professora, em vários momentos a história do câncer do então pai do roteirista ganha destaque e as várias personagens brancas com problemáticas dentro de suas subjetividade colaboraram para a ideia de que os brancos também sofrem.

Confundido sofrimento com racismo, que é estrutural e estruturante. Para o roteirista essas narrativas eram a prova de que o branco precisa deixar algo morrer para rever seu racismo, porém, dada a forma como as perguntas foram sendo feitas pós o fim da peça, ficou nítido que as pessoas brancas entenderam: Somos racistas, mas olha só como para mim branco também não é fácil. De uma forma que essas pessoas passaram a relatar suas dificuldades e até o fato de se sentirem negras. Só que racismo não é sobre sofrer ou se sentir negro, é sobre uma estrutura.

Chega a me dar arrepios lembrar do câncer e morte do pai do roteirista, uma ficção que não fica clara que vai sendo entrelaçada com o as dificuldades de escrever esse roteiro quando seu pai está à beira da morte. Essa para mim é a prova que no fundo se queria gerar empatia do espectador para com o sujeito branco, que só faz o mínimo ao pensar racismo.

No literal a peça é sobre o homem branco em seu privilégio com pai quase morrendo que insiste em falar sobre racismo, mesmo sabendo que o movimento negro vai criticá-lo muito, por isso escreve e reescreve a mesma peça. Esse o literal, é claro que críticos e os próprios roteiristas passam para o metafórico.

Arte é poder

O problema é que dada a situação do país, a dupla interpretação não serve para falarmos de racismo. Não dessa forma que foi construída essa peça. Todo dia o racismo age na minha vida indicando inclusive onde devo ou não estar. Espaços culturais são um exemplo de lugares onde negros estão sempre em minoria. Assim como negros são afastados por uma série de fatores dos espaços de criação, pois além de não acreditarem no nosso intelecto, negam nossa capacidade de sermos artistas.

A arte é poder. Então a estrutura racista funciona muito bem que até mesmo quando brancos pretendem falar de seus privilégios, eles NÃO conseguem contratar uma pessoa negra para nada nessa peça! Veja bem, o momento que mais me irritou foi saber que após o roteiro escritor, atores escolhidos, tudo pensando, alguns “provocadores” negros foram chamados.

Nós negros podemos ir além dos provocadores, e precisamos ir para que de fato o racismo acabe um dia. Discordo que deveria ter atores negros, acredito que se é para falar de branquitude faz sentido não ter negros no palco para a narrativa que propunham, mas acho que é cruel, racista e nocivo negros não serem chamadas para co-roteirizar, fazer curadoria de materiais referência, reler os diálogos e falas. O termo “provocador” já é infeliz em si, mas a forma como o indivíduo negro foi usado não como criador capaz de interferir e sim como mero token, caso alguém perguntasse se houve participação negra, é ainda pior.

Uma das principais formas de a branquitude rever seus conceitos em relação aos próprios privilégios é repensar porque só compartilham seus bens entre si. Talvez, quando um dos provocadores disse: Nós queremos as suas terras. Alguns que estavam em espaço de poder na própria peça não entenderam ou fingiram não entender. Pois é óbvio: Nós precisamos ter salários, ter prêmios APCA, ter diplomas de grandes universidades, dirigir espetáculos relevantes, VIVER da própria arte e talento. E para isso terá que se abrir espaço para negros, mesmo que seja em peças que só brancos subam no palco. Se a curadoria da MIT e do CCSP não pensou nisso, veja que o erro é a prova de que o racismo é uma estrutura. Age de forma muito sagaz para que negros continuem sendo marginalizados e subjugados.

Negros são vistos como “os outros”

Por fim, já quando o debate acontecia, uma moça branca disse olhando para mim percebendo meu incomodo: EU GOSTEI DA PEÇA. Se elas e os roteiristas soubessem que a subjetividade negra é negada entenderiam que antes de gostar ou não de algo, negros precisam superar a barreira do negro chegando antes de si mesmo. A subjetividade do homem branco evidenciada em peça não revoluciona a estrutura onde minha subjetividade é negada de forma que se eu não gosto da peça, na verdade eu não entendo de arte.

O problema somos nós negros, os outros, enquanto o branco é o universal, o humanos e o capaz. Capaz de ser chamado de gênio até quando o branco quer falar sobre branquitude e racismo deixando claro que NÃO ESTAR é a única forma de presença e HUMANIDADE negra.

*Stephanie Ribeiro é arquiteta e urbanista e escritora. Contribui com textos e artigos para diversos meios, além de participar de palestras e eventos. Atualmente, trabalha em seu livro a ser lançado pela editora Cia. das Letras em breve.

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