Crítica: Rosamaria Murtinho e Leticia Spiller mostram vigor em Doroteia
Por Miguel Arcanjo Prado
Chamada por Nelson Rodrigues (1912-1980) de farsa irresponsável, “Doroteia”, que encerrou o ciclo de peças míticas do autor pernambucano de alma carioca, ganha fôlego novo na montagem protagonizada por Rosamaria Murtinho e Leticia Spiller.
Como a fogosa ex-prostituta Doroteia, aquela que busca se regenerar junto às parentes castas, Leticia Spiller vive grande momento nos palcos e reafirma sua potência como atriz, deixando definitivamente para trás o preconceito de muitos por esta ter sido paquita. Em cena, Leticia é pura entrega desmedida à personagem, inclusive cantando muito bem.
Fazendo seu antagonismo, como a megera Dona Flávia, Rosamaria Murtinho celebra seus 60 anos de carreira com uma aula de vigor cênico. Rosamaria domina a tudo e a todos na obra, intensa e sempre presente no jogo com o elenco, fruto da sólida trajetória que construiu no campo da atuação.
Rosamaria ainda está ao lado do diretor Jorge Farjalla e de seu assistente Diogo Pasquim na construção da nova dramaturgia, que deu frescor à obra, fazendo com que seu diálogo com os novos tempos fosse mais potente.
A tragicomédia expõe o ridículo da moral levada a ferro e fogo, sendo uma das melhores metáforas do embate entre autor e obra tão presentes em Nelson Rodrigues, conservador na vida real e libertário em suas peças.
O diretor Jorge Farjalla coloca parte da plateia no palco italiano, imersa na cenografia. É como se estes espectadores fossem uma espécie de vizinho curioso daquela casa onde as mulheres sentem náuseas na noite de núpcia, cujos olhos não enxergam homens e sentem desespero ao pensar que, debaixo dos vestidos, seus corpos estão nus.
O texto simbólico de uma moral antiquada e de um lugar ocupado pela mulher em uma sociedade machista e patriarcal ganha nova leitura nestes novos tempos de mulheres empoderadas e donas de si, dando ares cômicos a algumas falas.
Com seus troncos e galhos retorcidos, a cenografia de José Dias é um grande achado na montagem, colocando as personagens em uma espécie de casa seca, sem viço, envelhecida pela amargura que inebria tudo.
A obra ainda tem no elenco Alexia Dechamps e Jaqueline Farias, desempenhando muito bem o coro dúbio para o pensamento extremamente conservador de Dona Flávia. E ainda há Anna Machado, intensa como a jovem que teima em negar o amor e suas possibilidades de felicidade, e Dida Camero, cujas rápidas entradas são arrebatadoras, diante de sua forte energia cênica.
Ainda merece elogio a maquiagem e visagismo de Anderson Calixto, reforçando os duros contornos do azedume.
Outro charme da montagem são os Homens de Barro, grupo de seis músicos formado por André Américo, Daniel Martins, Du Machado, Fernando Gajo, Pablo Vares e Rafael Kalil, que executam a trilha ao vivo (com direção musical de João Paulo Mendonça) e representam a presença masculina, tão próxima e tentadora.
A obra só peca em uma complicada escolha estética que reforça o estereótipo de sexualização do homem negro, um descompasso diante destes novos tempos nos quais a comunidade negra exige novos patamares no campo da representação artística.
“Doroteia” * * *
Avaliação: Bom
Informações sobre o espetáculo
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