Nu, artista Antonio Obá faz performance com N. S. Aparecida e concorre a R$ 130 mil
Por Miguel Arcanjo Prado
O artista visual Antonio Obá tem 33 anos, nasceu em Ceilândia, na periferia de Brasília. Mora há 18 anos na vizinha Vicente Pires e é professor de artes em Taguatinga, ambas cidades satélites do Distrito Federal.
Ele é um dos finalistas do Prêmio Pipa, o mais celebrado prêmio da arte visual brasileira contemporânea.
O vencedor pelo júri especializado leva R$ 130 mil e uma residência artística na Residency Unlimited, em Nova York, além de participar juntamente com os outros três finalistas de uma exposição no MAM-Rio entre 23 de setembro e 26 de novembro de 2017, quando o público poderá também escolher seu preferido, que levará R$ 24 mil. O resultado será em novembro.
Entre os temas de pesquisa do artista estão o sincretismo religioso, a miscigenação, as raízes afro-brasileiras e o erotismo.
A performance mais comentada de Antonio Obá é “Atos da Transfiguração: Desaparição ou Receita para Fazer um Santo”.
Nela, o artista rala uma imagem de gesso de Nossa Senhora Aparecida, transformando a imagem da santa católica em um pó branco com o qual cobre seu corpo, negro e nu, para produzir, de acordo com o artista, novos significados, que criticam o racismo velado da sociedade brasileira e remetem às tradições das religiões de matriz africana.
Antonio Obá conversou com exclusividade com o Blog do Arcanjo do UOL sobre seu trabalho, a indicação ao Prêmio Pipa e sua provocante performance.
Leia com toda a calma do mundo.
Miguel Arcanjo Prado — Como é sua performance “Atos da Transfiguração”? Quando e por que a criou?
Antonio Obá — É uma performance de 2015. No entanto, sua “gestação”, por assim dizer, foi longa. Fiquei pensando a ação por um ano; era uma imagem que, volta e meia, me vinha à mente: ralar a imagem de um santo. No entanto, eu não sabia ao certo o que isso significava. Muita coisa do processo criativo vem sem nome, até você conseguir traduzir aquilo. Eu já pensava em obras que tratassem de uma volta à casa, às tradições familiares e nacionais que, de certo modo, me formaram; um regresso que tinha a ver com a afetividade. Minha família sempre foi muito católica; fiz parte, conheci e entrei em contato com ritos interioranos: quermesses, romarias, folia de reis… E a ideia de ritual sempre me foi interessante. Claro, num contexto brasileiro, a miscigenação e a ideia de um sincretismo estão muito arraigadas nesses costumes. Refletir sobre essa herança e, principalmente, sobre meu corpo (negro, miscigenado), todas as situações que esse corpo histórico herdou e herda sem pedir, de tornaram motes de pesquisa e vivência em minha criação. Lembro que, certa vez, entrei numa loja de artigos religiosos de Candomblé e, a primeira coisa que vi ao entrar, foi a imagem de Aparecida.
Miguel Arcanjo Prado – O que isso representou?
Antonio Obá – Ter visto esse ícone cristão, naquele contexto, definiu todo o caráter da performance “Atos da Transfiguração”. É uma santa supostamente negra. Digo isso, porque vem de uma tradição histórico-religiosa que nada tem a ver com a religiosidade africana, por exemplo. O próprio conceito de sincretismo passou a ser muito frágil. De onde vem essa fala? É confortável defender a ideia de uma dita igualdade, quando, historicamente, já se marginalizou toda uma cultura. Isso tem a ver, inclusive, com os projetos de embranquecimento populacional que marcaram o Brasil no século 19, por exemplo. Ralar uma imagem preta até reduzi-la a um pó branco, jogar esse pó sobre si, após um “trabalho” braçal extenuante, se encobrir, fazendo desaparecer sua pele, sua identidade, são aspectos que a performance toca. Todavia, isso não se fecha, a obra acaba por ganhar vida própria e atinge, com isso, outros significados: cobrir o corpo com pó branco, em algumas civilizações africanas, significa divinizar esse corpo. O próprio nome da performance “Atos da Transfiguração: Desaparição ou Receita para Fazer um Santo”, faz referência ao rito de fazer a cabeça, fazer o santo, no Candomblé. Ou seja, ao mesmo tempo em que há uma crítica, há também uma exaltação. É uma celebração antagônica, um ritual.
Miguel Arcanjo Prado – Como você se sente ao ser finalista do Prêmio Pipa? O que isso representa?
Antonio Obá – Tem gerado um movimento que me deixa muito feliz e grato, por estar junto a artistas tão competentes, pela atenção da equipe organizadora e pelo ânimo que as pessoas criam em torno de meu trabalho. A pesquisa, a produção independe do prêmio, efetivamente. No entanto, se trata de um resultado que a obra, por si, alcançou. Essa mobilização nacional acerca do que você faz e acredita é pra lá de representativo. É potente e gratificante.
Miguel Arcanjo Prado – Já tem novos projetos na mente, quais?
Antonio Obá – Tenho trabalhado em torno de uma série de objetos que tem a ver com reflexão sobre a ideia de uma identidade nacional. Como o indivíduo se percebe num dado contexto, o que mantém essa imagem, o que faz perdê-la… Tem uma série de fotografias que pretendo fazer também. Essa exigirá um tempo maior, pois precisarei pegar a estrada visitar locais como fazendas, vilas às margens de rodovias, cidades nas quais as tradições religiosas de interior sejam correntes.
Miguel Arcanjo Prado – Nos últimos tempos artistas negros vem se destacando cada vez mais. Qual a importância disso?
Antonio Obá – Vejo que uma questão importante seja problematizar por que isso demorou tanto, por que passou tanto tempo sem ser percebido. Digo no sentido de certas instituições, por exemplo, se darem conta que não tinham um acervo significativo de produção artística afro-brasileira recente e, claro, isso é algo a ser pensado. Se existe hoje o que pode se entender por onda étnica, transformada em souvenir por diversas mídias, também é interessante colocar em pauta. Muito além de uma questão quantitativa ou mercadológica, é uma questão de dar voz, lugar de fala que, nesse caso, atua esteticamente. Isso é importante: uma consciência étnica que se insere no discurso estético. Usar da linguagem para provocar um reconhecimento de si.
Miguel Arcanjo Prado – Quem são os artistas que você admira? Por quê?
Antonio Obá – Nossa… Existem aquelas referências às quais você está sempre voltando. Dizer o porquê de cada uma delongaria um tanto. Mas gosto muito da Louise Bourgeois, Farnese de Andrade, Francis Bacon, Antoni Tàpies, Caetano Dias, o trabalho dos chamados santeiros do Piauí, como Mestre Juca Lima e mestre Assunção, muito me atrai o bestiário medieval… Enfim. Se for pensar num ponto em comum, são referências que, de uma forma ou de outra, (re)contam uma história do corpo; partem de uma história íntima, mas atingem uma ambiência vasta no sentido histórico-social.
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