Crítica: Sem Silvio Santos, Hebe, O Musical se sustenta na saudade

Debora Reis é Hebe Camargo em “Hebe, O Musical”: digna de ser premiada – Foto: Caio Gallucci/Divulgação

Por Miguel Arcanjo Prado

O espetáculo “Hebe, O Musical”, que estreia nesta quinta (12), no Teatro Procópio Ferreira, em São Paulo, com texto de Artur Xexéo e direção de Miguel Falabella, usa como alicerce a memória afetiva do público e a saudade que sentimos da apresentadora Hebe Camargo (1929-2012) para se sustentar.

Além, é claro, do talento e do mérito de Debora Reis, excelente e entregue como Hebe na fase adulta e na maturidade, em trabalho de composição digno de ser premiado, e Carol Costa, que vive a Hebe criança e adolescente, mantendo em riste aquela energia de quem estava destinada ao estrelato.

Se a grande comunicadora e artista é o foco da montagem, que se divide entre seus amores e sua trajetória de sucesso na TV, chama a atenção a ausência de um personagem fundamental na carreira de Hebe: Silvio Santos.

Não figura no rol de personagens da trama o apresentador e dono do SBT, emissora onde Hebe trabalhou por mais tempo em sua vida — 24 anos, entre 1986 e 2010, quando deixou o SBT aos prantos por conta de falta de acordo com o patrão sobre seu salário, indo para a Rede TV!, onde não foi feliz. Silvio Santos é apenas citado no texto de um jogo de perguntas e respostas. Rapidamente, uma única vez.

O condutor da trama é o tal game show sobre a vida de Hebe, do tipo enciclopédia, com um histriônico apresentador (Daniel Caldini) — em uma composição caricata que remete ao próprio Silvio Santos — e uma jovem fã interiorana de sotaque carregado (Brenda Nadler).

“Hebe, O Musical”: Debora Reis impressiona como a apresentadora – Foto: Caio Gallucci/Divulgação

O programa “Hebe” no SBT, que é o lembrado pelas gerações contemporâneas, sobretudo por sua longevidade e sucesso, ocupa pequeníssimo trecho do segundo ato do musical, o colorido — o primeiro é em preto e branco.

Outro personagem ausente e também apenas citado uma vez é o sobrinho de Hebe, Claudio Pessutti, a quem ela tratava como filho — Marcello Camargo, único filho da apresentadora, está no musical, interpretado por Adriano Tunes.

Importantíssimo na carreira da tia, Pessutti cuidou dos negócios de Hebe desde 1998 e a fez prosperar na etapa final de sua vida, com contratos milionários e licenciamentos de seu nome. E segue cuidando: atualmente, Pessutti está à frente da plataforma Hebe Forever, com nove projetos para manter viva a memória da loira, entre eles o musical, uma exposição itinerante, um filme e uma minissérie para televisão.

Mas, voltemos ao espetáculo musical.

Seu grande brilho está, sobretudo, no primeiro ato, no qual a trajetória de Hebe, filha de uma dona de casa (Clarty Galvão) e um violinista (Carlos Leça) do extinto cinema mudo de Taubaté que se muda para o Bixiga, em São Paulo, se mistura com o rádio e a criação da televisão no Brasil.

Falabella apostou na ousadia acertada de fazer todo o primeiro ato — o melhor e mais bem resolvido — em preto e branco, em impressionante efeito visual que traz teatralidade à obra e faz lembrar, muitas vezes, o cuidado estético de grandes diretores. Isso somado às delicadas coreografias criadas por Fernanda Chamma, sempre muito cuidadosa e exigente em seu trabalho.

Debora Reis e Carol Costa como Hebe Camargo – Foto: Caio Gallucci/Divulgação

Carol Costa, com energia indubitável, dá conta da menina e adolescente Hebe — brilha na cena em que canta Carmen Miranda —, até entregar a personagem na vida adulta a Debora Reis, impressionante como a apresentadora, causando assombro e arrepio no público em alguns momentos, tamanha a semelhança. É ela quem vai viver os amores turbulentos e demonstrar a mulher à frente de seu tempo que Hebe foi.

De uma geração antiquada, Hebe jamais esteve presa a tabus sociais. Namorou um homem negro, o pugilista norte-americano Joe Louis (interpretado por Renato Caetano), envolveu-se com um homem casado, o dono de Rádio Luís Ramos (Frederico Reuter, cujo canto agudo não combina com seu personagem grave), de quem engravidou e fez um aborto, por ele não desejar a criança.

Depois, casou-se com um rapaz mais jovem de chamativos olhos azuis, Décio Capuano (Guilherme Magon, incorporando o galã da história), com quem teve o único filho, Marcello, e resolveu abandonar a carreira para ser uma dona de casa — o que não conseguiu por muito tempo.

Depois, viveu o amor maduro com o empresário Lelio Ravagnani (Dino Fernandes, o que mais se destaca entre os companheiros de Hebe e o que canta melhor). Sempre, sem deixar nenhum homem ser seu fio condutor: fazia questão de ser senhora de seu destino.

Hebe, entre seus grandes amores – Foto: Caio Gallucci/Divulgação

A dramaturgia mais se aproxima a uma grande reportagem sobre Hebe. Há um excesso narrativo, faltando ação, além da melhor apresentação de muitos personagens, como Lolita Rodrigues (interpretada com um misto de bravura e doçura por Renata Ricci), Mazzaropi (Adriano Tunes, com excelente composição de personagem, como sempre é de seu feitio) e Nair Bello (Renata Brás, também intensa como a representada era), cujo nome artístico pelo qual era conhecida do público sequer é pronunciado. Estes surgem na peça para serem reconhecidos apenas por quem já domina a biografia de Hebe.

Algumas transições de cena são lentas, deixando um vazio no palco, fazendo com que a obra perca ritmo — isso deve ser melhorado ao longo da temporada, afinal, é preciso ter em mente que o musical foi montado a toque de caixa.

Quem rouba a cena a cada rápida aparição com seu carisma gigante, veia cômica autêntica e domínio do público é Giovana Zotti, que vive uma atrapalhada garota-propaganda da TV.

Ainda estão no elenco Raquel Quarterone, Renato Bellini, Maysa Mundim, Mari Saraiva (a bailarina mais expressiva), Fefa Moreira, Rodrigo Garcia e Fernando Marianno,

“Hebe, o Musical” tem como mérito homenagear os pioneiros do rádio e da TV no Brasil — há a reconstrução de um inocente dueto recuperado entre Lolita Rodrigues e Mazzaropi —, gente que tinha paixão pelo seu ofício em uma época em que a carreira artística não era sinônimo de dinheiro. Enquanto esteve viva, na TV, entrando semanalmente em nossas casas, Hebe foi uma ponte real com este passado, mais inocente, autêntico e, por isso mesmo, belo.

Além de acentuar isso, o musical joga luz para a grande mulher que Hebe Camargo foi, fazendo se sua própria vida um retrato da emancipação feminina no século 20. E nos recorda como ela faz uma baita falta. Que saudade, Hebe.

“Hebe, O Musical” ✪✪✪
Avaliação: Bom
Quando:
 Quinta e sexta, 21h, sábado, 17h e 21h, domingo, 18h. 140 min (com intervalo de 20 min.). De 12/10/2017 até 17/12/2017
Onde: Teatro Procópio Ferreira (r. Augusta, 2823, Jardins, São Paulo, tel. 11 3083-4475 e 11 3064-7500 (venda para grupos)
Quanto: R$ 25 (meia) a R$ 190
Classificação etária: 12 anos

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