Crítica: Com orgia, A Filosofia na Alcova é filme corajoso e livre
Por Miguel Arcanjo Prado
O grupo teatral Os Satyros tem com a obra de Marquês de Sade (1740-1814) uma relação duradoura de quase 30 anos nos palcos. Neste tempo, distintas gerações de belos, e muitas vezes talentosos, atores e atrizes passaram pelo grupo.
Sempre oferecendo seus corpos às libertinagens cênicas extraídas da obra do famigerado aristocrata francês pela dupla Rodolfo García Vázquez e Ivam Cabral, gurus da companhia desde que a fundaram em uma mesa de bar no largo do Arouche, em 1989.
Agora, o Satyros, que já lançou em 2015 seu primeiro longa “Hipóteses para o Amor e a Verdade”, com foco na solidão dos moradores da cidade de São Paulo — outro tema recorrente em suas peças —, lança seu segundo filme, “A Filosofia na Alcova”.
A primeira exibição, gratuita, será nesta sexta (17), às 21h30, dentro do 25º Festival MixBrasil, no CineSesc (r. Augusta, 2075, Jardins), em São Paulo. A estreia comercial para o grande público será no dia 23 de novembro.
Desta vez, a trama é extraída da obra de Sade, que sempre foi chamariz de público para as peças da trupe instalada na praça Roosevelt que nunca mais foi a mesma após sua chegada. Gente na plateia ávida por ver o sexo ser descortinado sem pudores.
Pois tal público não se decepcionará com o longa, que é a transposição para o cinema de uma das peças mais emblemáticas da trupe, que passou boa parte da década de 1990 sendo encenada na Europa, sempre causando enorme rebuliço.
Sobretudo, por conta da nudez dos artistas e de cenas escatológicas que chocam o espectador mediano, ainda desacostumado com o mergulho profundo no underground típico do Satyros.
O filme mantém diálogo forte com a peça, sem deixar de lado as especificidades da linguagem cinematográfica, que Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez, os diretores, demonstram já dominar no plano sequência inicial, desvelando corpos em energia sexual latente enquanto a voz circunspecta de Silvio Eduardo introduz a obra de Sade.
Destaque para a cuidadosa fotografia de Fabio Politi e a trilha envolvente de Marcello Amalfi e Ivam Cabral.
Com cenas de sexo forçado e consentido, com direito a ereção, masturbação, ejaculação e orgia real com 60 artistas, “A Filosofia na Alcova” não deixa de dialogar com as pornochanchadas das décadas de 1970 e 1980, trazendo de volta o sexo, de forma despudorada, para o cinema brasileiro, que andava cada vez mais pudico nos últimos tempos.
É de se espantar que foi justamente no período da ditadura que o cinema nacional tenha tido sua época mais libertária. E que “A Filosofia na Alcova” cause assombro por suas cenas de sexo, em pleno 2017, assim como a nudez na arte. O que só prova que o Brasil ainda é uma grande colônia ignorante.
De certo modo, com o recrudescimento de um pensamento conservador na sociedade brasielira contemporânea atual, o filme “A Filosofia na Alcova” ganha caráter de manifesto a favor da liberdade dos corpos e mentes.
Em comparação com as pornochanchadas, o filme do Satyros propõe maior sofisticação em relação ao sexo. No filme, mais do que despertar libido no espectador, a depravação sexual funciona mais como elemento simbólico da decadência moral de uma sociedade hipócrita. Assim, um olhar literal diminui os significados desta obra artística onde (quase) tudo é metafórico.
Phedra D. Córdoba, a grande diva cubana que fez história no Satyros, repete de forma irrepreensível o mordomo Augustin que fazia na peça homônima. Mesmo com poucas cenas, a artista com experiência de sobra de palco e de vida dá o tônus exato ao criado ávido por libertinagens na mansão que comanda e onde uma jovem moça é imersa no submundo dos prazeres carnais.
O longa é a última aparição de Phedra em nosso cinema, já que ela filmou “A Filosofia na Alcova” no estágio final de um câncer que a levaria aos 77 anos logo após a conclusão das filmagens.
Outro destaque do elenco é Eduardo Chagas, no papel do pai da protagonista vivida por Bel Friósi. Sua atuação, debochada e certeira, com o texto repleto de matizes, é um alento. Assim como também Suzana Muniz apresenta entrega dedicada ao papel da mãe, desesperada ao perder de suas rédeas a filha. A atriz, que fez a mesma personagem nos palcos, cresce muito mais no filme, demonstrando mais experiência e garra.
A jovem Bel Friósi empresta o frescor de seu corpo mignon para ser tragado pelo faminto trio de aristocratas libertinos formado pelos atores Henrique Mello, Stephane Sousa e Felipe Moretti.
Em suas depravações, sempre têm à mão o servo de corpo esculpido e sempre potente – papel de um incansável Hugo Godinho, artista na vida real fortemente ligado à arte homoerótica e que fez o mesmo personagem na mais recente montagem da peça, assim como os colegas de cena.
Contudo, neste núcleo do longa há um excesso de falas monocórdicas e uma sensação de que falta viço para dizer com propriedade e nuances (tão fundamentais) o excelente texto extraído de Sade. Tudo ganha mais vida quando surge a mãe interpretada por Suzana Muniz.
“A Filosofia na Alcova” é um filme, antes de tudo, corajoso e que prova que a luta pela liberdade de pensamento e dos corpos, já presente na obra de Sade dois séculos atrás, ainda é algo a ser defendido em pleno século 21. Neste país que ainda se espanta com a nudez na arte.
E prova da conivência e hipocrisia não só da sociedade como de parte da própria classe artística e cinematográfica, que abre espaço para a censura de garras à mostra novamente, é o fato do filme ter sido rejeitado na programação de praticamente todos os festivais de cinema nacionais nos quais foi inscrito. E isso após o primeiro filme do Satyros Cinema, “Hipóteses para o Amor e a Verdade” ter ganhado o Troféu Bandeira Paulista na 38ª Mostra e ter ficado em cartaz por 24 semanas consecutivas, um verdadeiro feito no cinema nacional, sobretudo para um filme independente.
O único festival que bancou exibir “A Filosofia na Alcova” foi o MixBrasil, mostra historicamente ligada à quebra de tabus sexuais e sociais na telona, como o segundo filme do Satyros faz muito bem.
E este crítico encerra o texto copiando ipsis litteris o final da crítica para a peça “A Filosofia na Alcova”, escrita pelo mesmo em 2015, apenas trocando a palavra peça por filme:
“A Filosofia na Alcova” é um filme necessário, sobretudo em um Brasil que dá espaço cada vez maior a discursos conservadores, retrógrados e mantenedores de velhos tabus. A força de Sade na releitura cinematográfica do Satyros sacode a pasmaceira vigente, renovando o fôlego de liberdade e expressão de nosso cinema.
“A Filosofia na Alcova”✪✪✪✪
Avaliação: Muito bom
Direção: Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez
Quando e onde: 17/11/2017, às 21h30, no Cinesesc (r. Augusta, 2075), com entrada gratuita, dentro do 25º Festival MixBrasil; filme em exibição no circuito comercial a partir de 23/11/2017
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