Chega de transfake, queremos trabalho, dizem artistas trans
Nesta segunda (29) é celebrado o Dia Nacional da Visibilidade Trans. Neste ano, a data acontece em um período de farta discussão sobre a representatividade de transexuais e travestis nas artes, com forte condenação do chamado “transfake”, que seria quando personagens Ts [travestis e transexuais] são interpretados por atores e atrizes cis [aqueles que se identificam com seu sexo de nascimento], segundo os artistas trans.
Outro fato emblemático para esta data é o da atriz Julia Katharine ser a primeira trans na história a ganhar um prêmio na Mostra de Cinema de Tiradentes, um dos principais festivais cinematográficos do país, no último sábado (27). Por seu desempenho no filme “Lembro Mais dos Corvos”, de Gustavo Vinagre, Julia levou o Prêmio Helena Ignez, concedido a mulheres de destaque em nosso cinema.
O que o Monart (Movimento Nacional de Artistas Trans) deseja é que feitos como o de Julia sejam cotidianos e não rara exceção. Para isso, os artistas trans fizeram o manifesto “Diga Não ao Transfake. Representatividade Já”, no qual condenam que atores e atrizes cis façam personagens trans nas artes, seja no teatro, no cinema ou na televisão.
Os artistas trans se inspiram na luta do movimento negro, que tornou insustentável o blackface, quando atores brancos pintados com tinta preta fazem personagens negras de forma estereotipada, reproduzindo o racismo.
Para o Monart, artistas não Ts que fazem papéis de trans e travestis agem da mesma forma, tirando de artistas trans as poucas oportunidades de trabalho que poderiam ter.
Polêmica com a peça Gisberta, em BH
A polêmica ganhou força no começo deste mês, quando artistas trans criticaram fortemente a peça “Gisberta”, apresentada no Centro Cultural Banco do Brasil de Belo Horizonte, e fizeram manifestação no local.
A montagem, protagonizada pelo ator Luis Lobianco, famoso pelos vídeos do grupo Porta dos Fundos, não tem nenhuma pessoa trans em sua equipe. A peça conta com texto de Rafael Souza-Ribeiro, direção de Renato Carrera e produção de Cláudia Marques.
Para o Monart, a obra ajuda no apagamento de pessoas Ts ao contar a história de Gisberta, símbolo da luta de transexuais e travetis contra a violência e a morte, lembrando que o Brasil ainda é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo.
A trans brasileira Gisberta Salce Junior foi assassinada brutalmente aos 45 anos após ser agredida e violentada por um grupo de 14 jovens portugueses durante dias e teve seu corpo atirado no fundo de um poço na cidade do Porto, Portugal, onde vivia. Seu covarde assassinato, motivado pelo ódio a pessoas Ts, a tornou símbolo da luta e da resistência trans.
Na última sexta, após a apresentação de “Gisberta” em Belo Horizonte, artistas do Monart pediram a palavra em um debate com o público e os representantes da peça, incluindo o ator Luis Lobianco.
Artistas trans contaram suas histórias de vida e acusaram a peça de sequer mostrar ao público o rosto de Gisberta, afirmando que a obra em nada ajuda a população T. Os vídeos com o caloroso debate estão disponíveis no canal do Monart no YouTube.
O ator Luis Lobianco, que chegou a se pronunciar sobre a polêmica no Facebook, disse na sexta (26) no CCBB-BH que vive no momento “um lugar de escuta” e lembrou que sua peça, “uma tragédia LGBT”, foi montada sem nenhum patrocínio, que não há lucro na montagem e que, se quisesse, “poderia ganhar muito mais dinheiro fazendo um stand-up”.
Artistas trans e travestis precisam sobreviver
O Monart reitera sua condenação a trabalhos artísticos que falem sobre trans e travestis e que não tenham pessoas Ts na equipe, tela ou palco. E pede que a classe artística e a imprensa não demonize suas reivindicações.
Para os integrantes do Monart, que pediram à reportagem para serem citados como um coletivo, muitos artistas cis se aproveitam da temática T, em voga nos dias atuais, para ganhar editais e personagens que seriam, por direito, de artistas trans e travestis, muitas vezes preteridos por produtores, diretores, cineastas e executivos do Entretenimento.
Integrantes do Monart lembram que no mês da visibilidade trans, boa parte da programação de centros culturais com a temática T por conta da data conta com artistas cis recebendo cachês dos órgãos culturais, dinheiro este que deveria ser direcionado a artistas trans e travestis, para que possam encontrar forma de sobrevivência em uma sociedade que os exclui.
Artistas trans afirmam que seu objetivo não é censurar ninguém, mas garantir que atores e atrizes transexuais e travestis consigam trabalho no campo das artes e possam sobreviver com dignidade, não precisando muitas vezes retornar para a rua, onde estão suscetíveis à violência e ao assassinato.
A quem proclama que ator pode interpretar qualquer personagem e que o Monart não deve condenar que artistas cis façam papéis trans, o grupo responde, dizendo que produtores e diretores chamem artistas transexuais para viverem mocinhas e mocinhos cis de novelas, filmes e peças.
O Monart reitera que, para artistas trans no Brasil atual infelizmente ainda não estão disponíveis todos os papéis. Nem mesmo, na maioria das vezes, as personagens trans e travestis. Por isso, proclamam: “Chega de transfake, queremos trabalho”.
Siga Miguel Arcanjo no Instagram
Curta Miguel Arcanjo no Facebook
Siga Miguel Arcanjo no Twitter