Opinião: Chega de TV só com brancos, é preciso negros também
Por Miguel Arcanjo Prado
A ausência de negros na novela “Segundo Sol”, que estreou nesta semana na Globo no horário das 21h, levantou a discussão na sociedade brasileira sobre a necessidade da representatividade negra na teledramaturgia.
Discussão esta que não pode ficar restrita aos folhetins e séries, mas deve abarcar a televisão brasileira como um todo. Afinal, quem aparece na TV serve de referência na construção de imagens associadas ao sucesso.
Levantamento feito pelo UOL, em reportagem de Gilvan Marques, apontou que negros são apenas 8% dos personagens nas atuais novelas da Globo, do SBT e da Record. Número irrisório diante de 55% da população brasileira de afrodescendentes: gente que se declara preta ou parda segundo o IBGE.
Na trama global de João Emanuel Carneiro que se passa na Bahia, Estado mais negro do país onde 80% da população é afrodescendente, segundo dados de 2017 do IBGE, é gritante a quantidade baixíssima de elenco negro.
Na lista de mais de duas dezenas de personagens do folhetim constam apenas quatro atores negros.
Estes papéis negros têm tramas paralelas e, infelizmente, ainda são personagens estereotipados: Roberta Rodrigues faz Doralice, herdeira de um terreiro de candomblé, Danilo Ferreira é Acácio, líder de uma ocupação, enquanto que Fabrício Boliveira é o motorista Roberval, que tem caso com a empregada e a patroa, e Claudia Di Moura é a empregada Zefa.
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Mais do que culpar o folhetim pelo terrível mal do racismo, é preciso pensar os fatores que levam quem cria uma novela ou qualquer outro programa em televisão a não pensar previamente em negros capacitados e competentes para desempenhares funções de destaque.
Só quando tal pensamento for comum a cabeças líderes é que será possível mudar o cenário de racismo estrutural que ainda persiste no Brasil. Não custa lembrar que fomos o último país no mundo a abolir a escravidão, apenas 130 anos atrás.
Os Estados Unidos, por exemplo, um país de primeiro mundo, já percebeu a importância da representatividade étnica no vídeo e nas telas, dando espaço cada vez maior para atores negros talentosos em suas produções de entretenimento.
E isso tem dado certo em termos comerciais: o filme arrasa-quarteirão “Pantera Negra”, com elenco majoritariamente negro, bateu todos os recordes de bilheteria e arrecadação neste ano.
Isso demonstra que há um forte mercado composto por gente ávida por ver negros representados nas telas e telonas e longe de lugares estereotipados até então infelizmente atribuídos a esta etnia: como empregada, escravo, motorista ou bandido.
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O sucesso da talentosíssima Viola Davis, estrela de séries “Como Defender um Assassino” na qual brilha como uma advogada bem sucedida, é outra prova disso.
No Brasil não é diferente. Tal demanda do público existe, por mais que dirigentes de televisões teimem em repetir uma lógica colonialista de valorização em suas telas de um modelo de beleza focado na etnia europeia.
A ascensão do casal negro Taís Araújo e Lázaro Ramos nos últimos anos na Globo, no meio publicitário e midiático como um todo também comprova que negros desejam ver-se representados como modelos de sucesso no Brasil.
E também de intelectualidade: a filósofa Djamila Ribeiro é uma das maiores vendedoras de livros em sua área no mercado editorial, com “O Que É Lugar de Fala?”. Com suas palestras, ela ainda tem lotado auditórios e teatros com milhares de lugares por todo o país.
Ou seja: o público consumidor brasileiro está ávido por ver negros brilhando no mundo do entretenimento e da televisão.
Dirigentes da TV brasileira parecem ainda dormentes para essa demanda por representatividade. Parecem não perceber o óbvio: não dá mais para aceitar apenas um ou outro negro ali em uma novela, programa ou em um telejornal.
É preciso que a participação de negros na televisão — ou em qualquer esfera de destaque e de poder — seja proporcional à desta população no país. Para que possamos criar novos imaginários não racistas e novos modelos de beleza e de pessoas bem-sucedidas, diferentemente do que se viu até então no Brasil.
Chega de TV só com brancos, é preciso negros também.
Por Miguel Arcanjo Prado
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“Se são cem milhões de uns, por que Globo aposta sempre no mesmo?”, questiona sociólogo
A pedido do Blog do Arcanjo no UOL, Daniel Martins, doutor e sociologia pela Unicamp, analisou a representação negra nos primeiros capítulos de “Segundo Sol”. Veja o que ele fala:
“Entendo que a Globo perdeu uma grande oportunidade. No início desse ano vimos um filme, “Pantera Negra”, cujo elenco é majoritariamente negro, ultrapassar a marca de 1.3 bilhão de dólares em bilheteria em todo o mundo. E mais, vimos como foi importante para uma multidão se ver representado nas telas do cinema.
Por que a Globo não se permitiu fazer o mesmo nas telas de TV espalhadas pelo Brasil? Uma vez que escolheram Salvador como pano de fundo para a trama de “Segundo Sol”, poderiam apresentar uma Salvador mais próxima da real.
Se a emissora pretende seguir deslocando suas tramas do eixo Rio-São Paulo para outras partes do país, como recentemente fez no Pará e em Tocantins, seria interessante que se atentassem para mais do que trilha sonora, sotaques carregados e imagens de lugares paradisíacos.
Sabe-se que Salvador é a capital mais negra do Brasil. De acordo com o IBGE, mais e 3/4 de sua população é negra. No entanto, vemos na tela um elenco majoritariamente branco.
Temos atores negros suficientemente talentosos para os papéis. A maior parte das personagens poderia ser interpretada por atores negros, sem qualquer prejuízo para a trama.
Não se trata de cota ou coisa do tipo. Se trata de atenção ao contexto que se pretende retratar. Se o que se busca é verossimilhança, não custaria atentar para o elemento étnico-racial de seu elenco.
Não se pede nada demais. Apenas a mesma atenção dada a outras tramas. Pode ter certeza de que, ao escalar um elenco para tramas como “Terra Nostra” ou “Esperança”, esse elemento foi levado em conta. O mesmo quando precisam escalar atores para uma novela como “Lado a Lado”, que aborda a escravidão no país.
De certo modo, mesmo em “Segundo Sol”, esse elemento foi observado. Basta ver os primeiros capítulos da novela e reparar em seus figurantes.
Os foliões “pipoca” são majoritariamente negros. Os pedestres, surpreendidos pela notícia da morte do cantor protagonista vivido por Emilio Dantas, são majoritariamente negros.
Os fãs, que fazem vigília em frente à porta do cantor, são majoritariamente negros. Até a vendedora da farmácia que vende teste de gravidez para a personagem de Giovana Antonelli é negra.
Ou seja, todo entorno da trama é negro, menos seu núcleo. Deste, até o momento, negros apenas a empregada doméstica e o motorista de uma abastada família soteropolitana.
Se são “cem milhões de uns”, como diz a campanha da emissora, por que seguir apostando sempre no mesmo, novela após novela?
Daniel Martins, doutor em sociologia pela Unicamp