Crítica: Isto É um Negro? impacta FIT Rio Preto e é a peça do ano
Por Miguel Arcanjo Prado
Enviado especial a São José do Rio Preto (SP)*
O que é ser negro na sociedade brasileira? Esta pergunta é premissa fundamental do espetáculo “Isto É um Negro?”. A obra impactou o FIT Rio Preto 2018, o Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, no interior paulista, onde teve sessões lotadas na sexta (6) e sábado (7).
Bem resolvido em termos de forma, conteúdo e, sobretudo, discurso, “Isto É um Negro?” é um dos melhores espetáculos do ano. Na verdade, é a peça do ano.
Um de seus principais trunfos é o grupo coeso e talentoso de quatro atores em cena: os ótimos Ivy Souza, Lucas Wickhaus, Mirella Façanha e Raoni Garcia.
Cada qual tem seu momento de maior destaque ao longo da inventiva encenação proposta pela diretora Tarina Quelho (que torna palatável discursos negros que muitos brancos insistem em considerar intragáveis) a partir de dramaturgia feita de forma coletiva e sob assinatura de José Fernando Peixoto de Azevedo no dramaturgismo, em uma de suas condensações dramatúrgicas mais potentes.
Falando em potência, mesmo em contexto harmonioso, a atriz Mirella Façanha se destaca com uma atuação absolutamente segura. Dominando matizes díspares, mas igualmente envolventes, ela merece, com este espetáculo, o reconhecimento de ser uma das melhores atrizes da nova geração do teatro brasileiro.
Os atores, todos negros, surgem nus, desnudando alma e corpos para um público majoritariamente branco — algo ainda corriqueiro no teatro, seja na plateia, na crítica, na curadoria ou no palco —, e logo conseguem captar cada olhar para o discurso que sai de suas bocas.
E trata-se de um dos discursos mais potentes e interressantes nos últimos tempos, completamente conectado com a ebulição da consciência racial na sociedade brasileira contemporânea. Isso é fruto de uma nova geração de negros intelectualizados nos bancos das universidades, sobretudo as públicas.
Se o racismo se entranhou em nossa sociedade de forma velada, hoje ele é descortinado por esta nova geração de negros conscientizados, da qual o elenco faz parte, gente que busca derrubar as estruturas raciais institucionais e culturais que regem nossa democracia conduzida por homens brancos.
O espetáculo encontra uma imagem repleta de força poética que demonstra ao que veio logo de cara, quando o grupo de atores nus empurra as cadeiras brancas empilhadas no centro do palco, até esparramá-las pelo chão ou mesmo quebrá-las com vigor cênico.
Depoimentos pessoais de histórias tão comuns aos negros brasileiros misturam-se a dados, manchetes e a situações de racismo cotidiano presentes e tristemente naturalizado em nossa sociedade como pílulas diárias de pequenas grandes violências contra corpos de negras e negros. Corpos pretos.
Sem se furtar das recentes discussões, inclusive intrarraciais, o espetáculo ainda aborda de forma potente o colorismo, fruto de nossa miscigenação (não cordial em sua origem, fruto de estupro de escravas) racial, que faz com que negros de peles mais clara se aproximem cada vez mais do prívilégio branco na sociedade brasileira, fazendo do reconhecimento desta negritude, no contexto da peça e na vida, um ato político.
Como quem acompanha o noticiário sabe, o racismo segue na pauta como uma das maiores problemáticas da sociedade brasileira. Basta ver os recentes ataques racistas aos jogadores negros da seleção eliminada da Copa da Rússia.
Sem forma mágica de resolução, tal racismo é explicitado neste espetáculo com força poética eloquente unida a grandes atuações e discurso contundente.
Se há pouquíssimo tempo parte da elite teatral brasileira insistia em defender como Capitães do Mato um espetáculo que mais se preocupava com o sofrimento do branco ao ter seu racismo desmascarado do que com o sofrimento do negro vítima de racismo ou então em vociferar pelo direito de um grupo consagrado em insistir na “tradição” de fazer blackface, é salutar que em 2018 negros possam ser, ao menos, donos de seus corpos cênicos e de seus discursos. E isso em um espetáculo tão emblemático e legitimado, finalmente, em um grande festival. O que representa uma pequena vitória na luta árdua e longa de todo um povo, reforçada por esta jovem e aguerrida geração.
“Isto É um Negro” é, portanto, um espetáculo de uma gente, de um povo que se cansou do estado constante de exceção em que é mantido. E toma seu poder de construir outros discursos, outros lados para a história.
A epifania criada pela emblemática canção “Faraó” ao som do Olodum, enquanto Shakespeare se mistura a novos dilacerantes textos na cena final de “Isto É um Negro?” é de desconcertar qualquer branco presente na plateia ao mesmo tempo em que mexe no âmago dos pouquíssimos, mas bravos na resistência, negros presentes.
Crítica por Miguel Arcanjo Prado
“Isto É um Negro?” ✪✪✪✪✪
Avaliação: Ótimo
*O jornalista Miguel Arcanjo Prado viajou a convite do FIT Rio Preto.