A cantora Daniela Mercury comprovou ser uma grande artista quando, no último sábado (21), fez um corajoso e contundente discurso contra a censura e em defesa da liberdade de expressão artística.
Sua fala aconteceu durante seu show no Festival de Inverno de Garanhuns (FIG), em Pernambuco, onde, por conta de pressão de políticos e líderes religiosos locais, foi censurada pelo Governo de Pernambuco a apresentação da peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, com a atriz Renata Carvalho, pelo fato de ela ser uma travesti.
A obra escrita pela dramaturga escocesa transexual Jo Clifford fala justamente do amor de Jesus Cristo pelas pessoas à margem da sociedade e perseguidas por esta.
Na encenação dirigida por Natalia Mallo, Renata vive o papel de Cristo.
Não custa lembrar a passagem bíblica quando fariseus (chamados por Jesus de “hipócritas” e “sepulcros pintados de branco”) quiseram apedrejar Maria Madalena por ser “pecadora”. O próprio Jesus disse: “Quem não tiver pecado que atire a primeira pedra”.
Se qualquer “pecador” pode interpretar Jesus Cristo em diversas peças pelo Brasil afora e em novela da televisão, por que Renata Carvalho não pode?
E mais: se fosse uma peça com uma atriz consagrada e global como Fernanda Montenegro será que seria censurada de igual forma?
Será que a classe artística inteira do país não sairia protestando de forma veemente contra a censura, caso a censurada fosse famosa?
Como a própria história do Brasil comprova, quando liberta dos porões, a censura não vê nível fama nem conta bancária. Atinge a todos.
Portanto, diante da censura a uma colega artista, Daniela Mercury decidiu não se calar e exerceu de forma veemente seu direito constitucional de liberdade de expressão.
Além de dedicar seu show a Renata Carvalho, a baiana fez um forte discurso, aplaudido por boa parte do público do FIG. Veja o vídeo:
“Me choca profundamente que os políticos desse país censurem uma peça de teatro, que censurem uma exposição de arte de grandes artistas. É de uma petulância absurda […] Arte não tem dogma, arte é crítica social, arte é essencialmente livre”, pontuou.
Fazendo questão de reforçar seu respeito à religião, afirmando ser de família católica e também sendo respeitosa ao direito de protesto religioso, o que não significa censura, Daniela ainda foi didática em relação à função da arte.
“Arte é para incomodar, é para fazer pensar, é para refletir, para libertar a cabeça de merda. Não existe uma civilização sem liberdade, não existe uma civilização na face da terra que não tenha sido construída a partir das manifestações artísticas de seu povo”, falou.
A fala da cantora é fundamental, sobretudo diante da ignorância atual cada vez maior, lembrando os tempos obscuros da ditadura militar, quando era normal a censura de obras artísticas e jornalísticas, coisa proibida por nossa Constituição, como bem lembrou Daniela.
“Então não me venham agora com ignorância querer conceituar o que é arte e o que não é. É ignorância absurda. O ministro [do STF aposentado] Carlos Ayres Brito disse que a gente estava na idade da mídia, mas parece que estamos na Idade Média. Censurar uma peça de teatro por convicções religiosas é um absurdo. Isso não pode ser permitido. A nossa Constituição não deixa isso. A nossa Constituição não é a bíblia […], a nossa Constituição nos permite, sim, lidar com símbolos religiosos e falar sobre eles”, disse.
Ela ainda reforçou a fragilidade de travestis em nossa sociedade.
“Como alguém tem a capacidade de oprimir uma travesti, que há tantos anos são massacradas? É desumanidade, maldade, ruindade”, falou.
Daniela ainda recorreu a um trecho de “Bichos Escrotos”, música do Titãs, que fez questão de declamar, obviamente referindo-se a políticos hipócritas que perseguem a atriz travesti: “Bichos escrotos saiam dos esgotos”.
“Ela [Renata Carvalho] é Jesus Cristo, sim. Eu estou aqui. Eu sou gay. Eu sou lésbica e daí?”, perguntou.
E antes de cantar o sucesso da Legião Urbana “Tempo Perdido”, de Renato Russo, fez questão de dizer: “Meu amigo Renato Russo era gay, muito bicha, muito veado, sim”.
Ao se posicionar em defesa de Renata Carvalho de forma destemida, Daniela Mercury demostra postura de uma grande artista que não tolera a censura, que tanto mal fez ao Brasil e volta a tentar se reestabelecer.
Mesmo censurada pelo FIG, a peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” com Renata Carvalho será apresentada nesta semana em local ainda não divulgado.
Um financiamento coletivo permitiu que a atriz e sua equipe pudessem viajar à cidade pernambucana.
A produção da peça recebeu ameaças já denunciadas à polícia e, em razão da segurança, não divulga onde será a apresentação.
Todos os ingressos disponibilizados foram vendidos, o que só comprova que, se há uma tentativa de fazer o Brasil voltar a tempos ignorantes, há também muita gente disposta a resistir, enfrentar a censura e defender a liberdade.
Ironicamente, o tema do Festival de Inverno de Garanhuns 2018 é “Um Viva à Liberdade”.