André Nigri desloca certezas em Paralisia, seu primeiro romance
Um homem de meia idade paralisado diante da vida, com seus segredos e fracassos revelados enquanto desloca todas as certezas possíveis. Esta é a base do primeiro romance do escritor mineiro André Nigri, “Paralisia”, pela Editora Reformatório.
Nome importante do jornalismo cultural brasileiro, Nigri passou por veículos como O Tempo, Jornal da Tarde, Bravo e Veja BH antes de fincar os pés na ficção.
A obra tem pré-lançamento na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) nesta sexta (27), às 17h, na Casa do Desejo (r. Fresca, 277).
Depois, tem lançamento oficial em São Paulo no dia 21 de agosto, uma terça, quando a partir das 19h ele autografa o livro em seu espaço preferido no bairro onde vive, Perdizes: a Livraria Zaccara (r. Cardoso de Almeida, 1356).
Nascido no dia 11 do fatídico mês de maio de 1968, aquele que mudou toda uma geração, o autor sempre foi fascinado por livros e a escrita. Contudo, levou tempo até permitir que o jornalista cedesse espaço ao escritor.
Em um café na ladrilhada rua Simão Álvares, em Pinheiros, zona oeste de São Paulo, André Nigri, de 50 anos, conversou com exclusividade com o Blog do Arcanjo no UOL neste momento de sua vida tão especial.
Leia com toda a calma do mundo.
Miguel Arcanjo Prado — Por que “Paralisia”?
André Nigri — Escrever o romance levou 15 meses, escrevendo todos os dias, oito horas por dia, um tempo bastante dilatado. Cheguei ao final sem o título. Quando li o romance inteiro, pensei assim: qual o tema que liga as três partes? A resposta veio fácil: a imobilidade do personagem, portanto, sua paralisia.
Miguel Arcanjo Prado — Que personagem é esse?
André Nigri — O personagem é Jofre Monteiro. O nome veio de forma muito espontânea. Só depois me dei conta que você se tirar uma sílaba vira Jo, ou Jó, portanto um homem que padece de sofrimentos. Mas, também não queria fazer um romance de autocomiseração. Não queria fazer um romance de mais um pobre diabo, que a literatura está cheia.
Miguel Arcanjo Prado — O livro é dividido então em três partes?
André Nigri — Sim. Na primeira, o sujeito está tentando sair dos escombros de um casamento desfeito, bebendo sem parar e se autodestruindo, sem sair do lugar. Na segunda parte, mudo completamente o plano narrativo. Na primeira parte uso o estilo livre indireto, precisava aproximar o personagem do leitor, mas não queria usar a primeira pessoa. Porque a gente vive uma época em que há um certo modismo acadêmico que contaminou a literatura brasileira, que é a tal da autoficção. E eu não queria ser rotulado como mais um autor de autoficção. Porque eu acho que todo mundo que escreve um livro parte de si mesmo. E mesmo autores que aparentemente tentam se esconder por trás de seu romance, eles aparecem em sua literatura. Não é uma confissão disfarçada de romance, é um romance disfarçado de confissão.
Miguel Arcanjo Prado — E as outras partes?
André Nigri — Também, ainda falando da primeira parte, a situação de estupor alcoólico e de memória do personagem não me permitia colocá-lo na primeira pessoa. Como o personagem vai escrever algo em um estado total de embriaguez e desorientação? Então, na segunda parte, mudo o estilo e uso muito o pronome você. É como se eu estivesse apontando o tempo todo: ‘por que você fez isso?’. Há uma ênfase muito grande na repetição de você. A primeira parte é o presente, a segunda parte é um interlúdio, com depoimentos.
Miguel Arcanjo Prado — Que depoimentos?
André Nigri – São trechos do diário do pai, trechos de depoimentos da mãe que revela um segredo, e trechos de depoimentos das ex-mulheres do Jofre, que está no terceiro casamento falido.
Miguel Arcanjo Prado – Quem ele é?
André Nigri – Jofre é um cara de meia idade, de uma classe média alta ociosa, de vida abastada, correntista, um sujeito que tudo que queria fazer, ele não fez. Na segunda parte, vem um pouco da história pregressa dele, através de um pai advogado de políticos e empresários, que fazia chicana para safar corruptos, e tem também o depoimento da mãe, que revela muito do casamento artificial de fachada dos pais. De uma família tipicamente mineira. Embora o livro não tenha alusão direta geográfica, quem conhece bem Minas vai percebê-la. Não gosto muito de falar isso, mas há um traço mineiro no livro. Em Minas, os escândalos são silenciosos.
Miguel Arcanjo Prado – E a terceira parte?
André Nigri – Na terceira parte o tempo vai para o presente do indicativo. A narrativa volta para o presente, mas sem o estilo livre indireto íntimo, ele agora se distancia. Entre uma e outra passam-se dez anos.
Miguel Arcanjo Prado – Essa paralisia do personagem diante da vida significa algo mais?
André Nigri – Por mais que em determinada altura o personagem tente sair do lugar, se movimentar, ele está sempre parado, imóvel. Fiquei pensando e isso aparece mais no final do livro: a paralisia não é um estado de morbidez, é um estado moral do Brasil. A gente vive no Brasil, pelo menos nos últimos anos, um estado de total paralisia. Você tem um blábláblá, mas estamos no total estado de indiferença e imobilidade. O título “Paralisia” joga com a ambiguidade que a palavra traz.
Miguel Arcanjo Prado – Como o jornalista que escrevia sobre livros virou o romancista?
André Nigri – A vontade de escrever ficção eu sempre tive. Mas nunca conseguia chegar lá. Aos 18 anos, eu já era um leitor fanático e queria escrever. Mas nada que escrevia, achava que prestasse. Mostrava para as pessoas, e elas me falavam: ‘isso aqui não é você, não vejo sinceridade nisso’. Essa palavra, “sinceridade”, me pegou por muito tempo…
Miguel Arcanjo Prado – E você foi para o jornalismo?
André Nigri – Falo que fui igual cachorro entra na igreja: deixaram a porta aberta e eu entrei no jornalismo. Por gostar tanto de ler e de escrever, acabo caindo na área de livros, tanto em Belo Horizonte, no jornal O Tempo, quanto em São Paulo, no Jornal da Tarde. Comecei em O Tempo em 1996, no suplemento literário Engenho e Arte, que depois acabou. Aí fui para o Magazine, o caderno cultural do jornal, de 1997 a 2000, cobrindo livros. Depois, vim para São Paulo trabalhar no Jornal da Tarde.
Miguel Arcanjo Prado – Porque você mudou-se de BH para São Paulo?
André Nigri – Eu queria sair de Minas, minha relação com Minas é de muito conflito, sempre foi. O Murilo Felisberto, que fundou o Jornal da Tarde ao lado de Mino Carta, havia reassumido o jornal. E o Humberto Werneck, outro mineiro, me indicou para ele. Aí me mudei de BH para São Paulo em 2000 para trabalhar no JT. Comecei cobrindo livros. Mesmo no processo de despersonalização do jornal, que acabou mais tarde com seu fechamento, quando entrei ainda havia espaço para literatura. Fiquei de 2000 a 2004 no JT.
Miguel Arcanjo Prado – O JT fez história no jornalismo brasileiro.
André Nigri – Sim, muitos grandes escritores trabalharam no JT. Na minha época, estavam o Júlio Maria, hoje no Estadão e que fez a biografia da Elis Regina, meu editor era o Sérgio Roveri, bem antes de ser este dramaturgo consagrado, e quem fazia crítica de teatro era o Alberto Guzik, um herdeiro da tradição de crítica de Sábato Magaldi e Décio de Almeida Prado, que nos últimos anos de vida tornou-se ator. Foi uma convivência muito especial para mim com aquelas pessoas.
Miguel Arcanjo Prado – Depois do JT você foi para a Editora Abril?
André Nigri – Depois fui para um projeto de uma revista que não deu certo e fui para a Editora Abril, em um projeto completamente diferente, uma revista popular, que era a Ti Ti Ti, uma linguagem complemente diferente, desafiadora. Escrevia texto, sempre muito curto, e a Marcia Piovesan, a redatora chefe, me falava “isso ninguém entende”. Você colocava “êxtase” no texto e ninguém iria entender. Até horóscopo eu editava. Depois, fui ser editor da Contigo, quando nos conhecemos com você recém-chegado de BH. Tem uma coisa que muito importante nesse processo que foi me desinibir. Eu era um sujeito extremamente introvertido, e o jornalismo me abriu essa porta para sair da timidez. Imagina, na Contigo tinha de entrevistar celebridades. “Quero que você faça um perfil de Antonio Fagundes”, me diziam. E eu ia lá fazer.
Miguel Arcanjo Prado – Você ainda pegou um momento em que havia qualidade no jornalismo, qualquer que fosse a área, como o jornalismo de celebridades.
André Nigri – Sim, na minha época de Contigo, e isso você também vai lembrar, Miguel, muitas vezes quem fazia perfis de celebridades como convidado era o Lira Neto, um grande escritor. O Roberto Civita tinha essa preocupação em suas revistas: qualidade não só com o texto como com a imagem. Era impressionante. Era realmente uma obsessão com a qualidade.
Miguel Arcanjo Prado – Da Contigo você foi para a Bravo?
André Nigri –Sim, fui para a Bravo ser editor de Cinema. Depois, fui para Belo Horizonte implantar a Veja BH, onde editei o roteiro, a agenda cultural, que é o carro-chefe da revista.
Miguel Arcanjo Prado – E o escritor?
André Nigri – O jornalista que vai se transformando em escritor foi no convívio com escritores. Quando cheguei em São Paulo, na rua Fradique Coutinho havia um café onde funcionava também a Hedra Editora. Lá o Evandro Afonso Ferreira, um mineiro de Araxá que foi para Brasília e depois veio para São Paulo, organizava com o Marcelino Freire reuniões informais de escritores aos sábados à tarde. Eu frequentei essas reuniões e convivi com gente como o Marçal de Aquino e o Luiz Ruffato, que também trabalhava no JT.
Miguel Arcanjo Prado – O jornalismo sempre foi um porto seguro de escritores?
André Nigri – Sempre. Porque o sujeito que sabe escrever, ou gosta pelo menos, vai ganhar a vida onde? Agora está difícil, porque nem o jornalismo mais tem.
Miguel Arcanjo Prado – Mas o jornalismo também não sufoca o escritor?
André Nigri – Também. Para escrever literatura é preciso tempo. E o jornalismo não te dá tempo. Não dá pra dizer: eu trabalho até sete da noite na redação, chego em casa, tomo um banho e escrevo de nove à meia-noite, porque seu cérebro já foi nocauteado, foi pra lona.
Miguel Arcanjo Prado – Você resolveu escrever quando volta de BH para São Paulo?
André Nigri – Isso, em 2011 vou para BH fazer a Veja BH e volto a SP no final de 2014, quando a Veja BH fecha. O jornalismo tinha mudado muito, as coisas que me ofereciam não valiam muito a pena. Estava num momento de esgotamento. Comecei a escrever de forma espontânea.
Miguel Arcanjo Prado – E o que aconteceu?
André Nigri – Escrever me dava uma excitação que nunca tinha tido antes. Percebi que se tivesse uma conexão direta com a verdade, a tal sinceridade, iria fluir. Tinha de ser um negócio sem concessões. Quando vi que passava seis, sete, oito horas ligado ao livro e no resto do tempo pensando nele, vi que era assim que se escrevia um romance.
Miguel Arcanjo Prado – Foi trabalhoso?
André Nigri – Muito. Você tem que ler muito, anotar, tem que viver o livro. Além de manter a sanidade mental mais descansada. Porque tem que ter físico para aguentar isso, você começa a sentir dor. Então eu fui andar de bicicleta, pois precisava ter energia. Passei a andar até 35 quilômetros de bicicleta em um dia, saía da minha casa em Perdizes, ia até o Morumbi, depois ao Ibirapuera, ao centro, andava a cidade toda. Exercício aeróbico como a bicicleta oxigena o cérebro pra caramba. Te dá um barato, uma lucidez.
Miguel Arcanjo Prado – No que o jornalismo ajudou o escritor?
André Nigri – Eu acho que, se alguma coisa o jornalismo ajudou o escritor, foi saber ouvir, sobretudo no mundo em que tantos têm tanto o que dizer, mas não dizem nada. Pouca gente está ouvindo. No jornalismo, pelo menos no jornalismo levado a sério, você tem de saber ouvir, e fazer as perguntas certas. E o romance nada mais é do que fazer perguntas. E não dá respostas. Se alguém quiser respostas, que vá para o Facebook, que está cheio delas. No romance, não há comprometimento com as respostas, ele tem o comprometimento de examinar o emaranhado de contradições e conflitos que é a gente. Não é como você está pensando, não é bem assim. Porque tudo tem o avesso. Não à toa Minas está nisso. Minas tem uma máscara de decoro e, que por baixo dessa superfície polida, as coisas não são bem assim.
Miguel Arcanjo Prado – Você é parente do romancista Bernardo Guimarães, né?
André Nigri – Sim. Parte da minha família está em Minas desde o século 18, Bernardo Guimarães é meu trisavô. Venho de uma família com educação católica, carregada de culpas e interdições, de terríveis preconceitos, mas que não são manifestados, são silenciosos. Então, quando você inverte e vira pelo avesso, você vê que ali embaixo não é nada bonito, entendeu?
Miguel Arcanjo Prado – Sim, e como… Pensar no leitor do seu livro, te aflige?
André Nigri – Sobre isso eu não tenho o menor controle. Talvez seja melhor começar a tomar remédios de tarja preta para aguentar a ansiedade. Agora, estou exposto. O que eu espero é que o livro encontre um apelo, que repercuta e desloque um pouco algumas certezas que o leitor possa ter. É isso que a arte faz. Ela desloca as certezas. Mostram que as coisas não são bem assim. Podem ser de outro jeito. A política generaliza, a literatura particulariza. É um romance sobre um cara com suas relações amorosas, tanto eróticas quanto familiares, e os conflitos que estão por trás de toda relação. E eu não sei se vão achar o livro otimista ou pessimista. Por incrível que pareça, acho que sou um otimista. Senão, não escreveria. Se eu fosse um niilista total, escreveria para quê?
Por Miguel Arcanjo Prado
Fotos Bob Sousa
Agradecimento: Sushi+Poke