Crítica: Hilton Cobra se consagra como Lima Barreto irônico e impactante

Atuação visceral: o ator Hilton Cobra em Traga-me a Cabeça de Lima Barreto! – Foto: Adeloyá Magononi – Divulgação – Blog do Arcanjo – UOL

Qual motivo fez com que o escritor Lima Barreto (1881-1922) tenha sido desprezado por parte da intelectualidade brasileira, diferentemente, por exemplo, do sempre louvado Machado de Assis (1839-1908)? Ambos eram descendentes de negros escravizados, mas galgaram diferentes lugares no cânone cultural brasileiro devido às decisões literárias que tomaram. Quem eram os personagens de Machado de Assis, qual cor tinham e de que estrato social eram? A mesma pergunta pode ser feita diante da obra de Lima Barreto, e uma evidente diferença se estabelecerá.

Esta é uma das grandes provocações existentes na interessante peça “Traga-me a Cabeça de Lima Barreto”, monólogo potente com o ator Hilton Cobra, o Cobrinha, que celebra 40 anos de trajetória artística com este espetáculo e faz uma atuação brilhante à frente do papel-título.

O Retrato do Bob: Hilton Cobra reinventa Lima Barreto e conquista o sucesso

A partir de uma autopsia fictícia no cérebro de Lima Barreto por cientistas adeptos do pensamento racista da eugenia, no afã de buscar razões para a genialidade em um cérebro mestiço, o texto inventivo e ao mesmo tempo poético e provocante de Luiz Marfuz faz um incontestável tratado sobre o racismo que machuca a sociedade brasileira desde os tempos em que o autor era vivo e, infelizmente, segue presente nos dias contemporâneos.

Fernanda Júlia propõe uma direção inventiva, de marcações que reforçam a força cênica de Hilton Cobra, vibrante o tempo todo no palco. Ver Hilton Cobra em cena é testemunhar um corpo forte, ágil, intenso e presente a cada fala, gesto e olhar, em interlocução direta com seu público, em um diálogo concreto, também fruto de trabalho primoroso de corpo e movimento sob assinatura de Zebrinha.

Assim, inebriado pelo ator à sua frente e pela direção musical de Jarbas Bittencourt, além dos vídeos informativos e precisos de David Aynnan, o espectador não só descobre a genialidade de Lima Barreto como também se assombra com as teses eugenistas que figuraram no Brasil em começos do século 20, defendidas por homens como Nina Rodrigues e Monteiro Lobato, incentivadores do embranquecimento de nossa população a partir da imigração europeia.

Outra coisa que esta obra provoca é o despertar do público para a importância da literatura de Lima Barreto, tirando das estantes empoeirada das velhas bibliotecas públicas livros do autor que vão além de “Triste Fim de Policarpo Quaresma” e que deveriam fazer parte de nossas vidas. Cobra como Lima Barreto aguça nosso interesse pelo escritor, que merece ser redescoberto a partir de novas perspectivas.

De tal modo, em seu monólogo, Cobra assume discurso potente e militante em prol de um novo lugar social e intelectual não só para Lima Barreto, mas para o povo negro como um todo, a partir da reconstrução de seu combativo Lima Barreto repleto de personalidade e força tal qual o ator que o interpreta, brindando o público com atuação segura, irônica, impactante e consagradora.

Crítica por Miguel Arcanjo Prado
“Traga-me a Cabeça de Lima Barreto”
Avaliação: Ótimo ✪✪✪✪✪

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