Crítica: Ótima, FALA supera heteronormatividade com Coletivo Negro maduro

    Raphael Garcia e Flávio Rodrigues em cena da ótima peça “F.A.L.A”, do Coletivo Negro: sessão grátis nesta quinta (23), às 21h, no Teatro Sérgio Cardoso – Foto: Sergio Fernandes – Divulgação – Blog do Arcanjo – UOL

Muitas vezes a opressão é tanta que até falar é difícil. É como se o único — e triste — caminho fosse se anular e aceitar o poder do outro, aquele que diz mais forte quem ele e os outros são. Mas, é preciso dizer não, mesmo que sob forma de um silêncio desconcertante.

Tais constatações surgem na cabeça deste crítico ao assistir a peça “F.A.L.A” – Fragmentos Autônomos sobre Liberdades Afetivas, obra que supera a heterossexualidade normativa e representa o momento de maior maturidade do Coletivo Negro. Importante grupo teatral presente na cena paulistana há uma década, ele demonstra com a peça abarcar a diversidade presente dentro de seu recorte negro.

Com delicadeza, o grupo que já abordou questões referentes à mulher e ao homem negros, além de sempre evocar a ancestralidade africana, dessa vez, aborda com delicadeza o universo LGBTI+ negro.

É interessante ver a obra surgir na sequência dos sucessos “Farinha com Açúcar ou sobre a Sustança de Meninos e Homens”, que abordou o homem negro (e heterossexual) da periferia em uma ode ao Racionais MCs, e “Ida”, com a mulher negra universitária empoderada em foco.

Só após estes discursos, feito com oratória guerreira na primeira obra e com uma fala mais poética, sem deixar de ser combativa, na segunda, é que negros e negras que fujam do padrão heterossexual conquistem dentro do repertório do Coletivo Negro uma obra na qual sejam o foco.

Clodd Dias em cena da peça “F.A.L.A.” do Coletivo Negro – Foto: Sergio Fernandes – Divulgação – Blog do Arcanjo – UOL

E é justamente a força desta comunidade formada por corajosos negros gays, trans e lésbicas — que sofrem nas mãos não só da polícia como também de seus próprios familiares — que surge neste espetáculo que é sutil resposta à anulação social constante.

O sombrio armário presente na cenografia é de dar arrepios a qualquer um que lute pela liberdade individual dos seres.

“F.A.L.A” descortina os recortes de opressão, demonstrando que a comunidade negra LGBTI+ sofre subjugo cruel mesmo dentro de seu grupo étnico.

Em tempos de textão na internet, é salutar a sensibilidade do diretor e idealizador Flávio Rodrigues ao privar da palavra dita sua obra, construída a partir de textos de Luh Maza, Paloma Franca Amorim e Rudinei Borges.

As palavras podem não soar de forma óbvia, mas o corajoso discurso encampado por “F.A.L.A” está lá, pulsante e pungente, o tempo todo.

Seja em gesto, olhar, dança, música ou elemento audiovisual.

Dani Nega em cena de “F.A.L.A.”, do Coletivo Negro – Foto: Sergio Fernandes – Divulgação – Blog do Arcanjo – UOL

Na encenação, Clodd Dias, Dani Nega, Flávio Rodrigues e Raphael Garcia formam um sensível quarteto de artistas no palco, que reverberam trajetórias de tantos em seus corpos — fartamente trabalhados por Djalma Moura e Aysha Nascimento, que também codirige a peça.

Inteligente e sofisticada, a encenação de “F.A.L.A” foge ao ego e aposta em outros recursos, que não a verborragia exacerbada, para se comunicar com o público.

E o público, por sua vez, parece compreender bem o recado e se emocionar com o mesmo, diante do encontro sublime proposto.

Ao fim, ecoa a voz de Ellen Oléria em regravação especial para a peça de “Fala”, sucesso do Secos e Molhados que faz parte de nossas memórias na voz de Ney Matogrosso.

“Eu não sei dizer, nada por dizer,
então eu escuto.
Se você disser tudo o que quiser,
então eu escuto.
Fala
Se eu não entender, não vou responder,
então eu escuto
Eu só vou falar na hora de falar,
então eu escuto
Fala”

Precisa dizer mais o quê?

Crítica por Miguel Arcanjo Prado
“F.A.L.A” – Fragmentos Autônomos sobre Liberdades Afetivas
Avaliação: Ótimo ✪✪✪✪✪

Nota do Crítico: Após curtíssima temporada de estreia, “F.A.L.A.” será apresentada gratuitamente nesta quinta (23), às 21h, no Teatro Sérgio Cardoso (r. Rui Barbosa, 153, Bela Vista), e nesta sexta (24), às 19h30, na Fábrica de Cultura da Brasilândia (av. General Penha Brasil, 2508), dentro da programação da Virada Sustentável. Chama a atenção deste crítico que a obra, excelente, ainda não tenha conseguido realizar uma temporada longa na cidade de São Paulo. Isso por si só já demonstra o lugar de invisibilidade que se encontram negros e negras LGBTI+. Que algum programador ou gestor cultural sensível ajude esta peça a voltar rapidamente ao cartaz. Isso é mais do que necessário.

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F.A.L.A. tem sessões gratuitas em SP: quinta (23), às 21h, no Teatro Sérgio Cardoso, na sexta (24), 19h30, na Fábrica de Cultura da Brasilândia – Foto: Sergio Fernandes – Divulgação – Blog do Arcanjo – UOL

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