“Liberdade adquirida não se abre mão”, diz Ney Matogrosso na Mostra CineBH
Ney Matogrosso é a grande estrela da 12ª Mostra CineBH, festival cinematográfico que vai até 2 de setembro na capital mineira com organização da Universo Produção, a mesma que faz a Mostra de Cinema de Tiradentes e a CineOP, em Ouro Preto.
O cantor de 77 anos atua no filme que abriu o festival na última terça (28), “Sol Alegria”, com direção de Tavinho Teixeira e Mariah Teixeira.
Libertária, a produção que ainda tem no elenco Joana Medeiros e Vera Valdez se passa em um retiro de freiras militantes e devassas que plantam maconha no interior do Brasil.
Ney dá vida a um poeta toureiro. Com muita cenas metafóricas repletas de liberdade, desbunde e pitadas generosas de sexo, o longa vai na contramão do conservadorismo crescente na sociedade brasileira.
Conservadorismo este que deixa muitos assustados com o rumo das eleições presidenciais de outubro próximo.
“O filme aborda esse perigo. E eu acho que a gente tem de firmar a liberdade. A liberdade de viver como a gente é, como a gente quer. Então, vejo esse filme e fico muito feliz de participar dele”, diz Ney Matogrosso.
Questionado pelo Blog do Arcanjo no UOL se está com medo das eleições, Ney responde com muita calma.
“Medo, eu não te diria, mas, estou apreensivo… Porque é perigoso”, afirma, antes de continuar: “Eu acho que as liberdades que nós conquistamos, sobretudo a minha geração, não podemos abrir mão delas. Apesar do que venha acontecer, liberdade adquirida não se abre mão”, discursa.
“Ninguém nos ofereceu a liberdade, conseguimos às nossas custas”, diz Ney Matogrosso
Na visão do artista, é preciso resistir. “Temos de manter esse anseio pela vida, pela liberdade, independentemente de qualquer governo que passe, porque todos passarão. A gente está aqui, ansioso pelo que vai acontecer agora, mas isso vai passar… [torando-se mais enfático] Vai passar! Grandes civilizações aconteceram e passaram! Isso tudo vai passar”, fala Ney.
“A gente quer tudo para agora, nesse momento, para minha vidinha aqui. Mas, se você se distancia para observar o andamento do mundo, você entende isso: tudo isso é uma bobagem. Cinquenta anos não é nada. Cinquenta anos atrás eu já estava vivo e pensando e estou aqui. Eu não achei que chegaria vivo no ano 2000. Porque o ano 2000 era tão distante, que eu dizia: imagina, ano 2000 já morreu todo mundo”, recorda.
“Então, é preciso manter essa coisa acesa dentro da gente. Porque a gente não pode se submeter e ficar tristonho porque há uma possibilidade de uma coisa ruim acontecer. Se ela acontecer, ela vai deixar de acontecer em algum momento. A gente tem de se manifestar a respeito de tudo. A gente não tem de se esconder”, diz Ney, antes de reforçar.
“Repito: liberdades adquiridas são liberdades que a gente não pode abrir mão. Porque ninguém nos ofereceu a liberdade. Se somos livres de alguma maneira, conseguimos às nossas custas. Portanto não precisamos temer por ela [a liberdade]. Por quê? Vão me prender porque eu penso diferente? E daí? O que vai mudar? O meu pensamento não vai mudar. Morrer? Todos vamos em algum momento. Então, não podemos ter esse medo de estar vivendo no Planeta Terra nesse momento tão delicado”, afirma.
Filme, eutanásia e “anarquia não é bagunça”
Ney diz que aceitou o convite para o filme porque tem muita intimidade com o cineasta Tavinho Teixeira: “Entendo a cabeça dele, temos os anseios que são comuns às pessoas que raciocinam minimamente”.
Ele explica que seu personagem tem o desejo de praticar a eutanásia. “As pessoas vão para lá para praticar a eutanásia. Eu fico pensando que as pessoas não notam muito isso. Também é uma ideia muito subversiva, que eu concordo. As pessoas têm de ter esse direito também. Se estão doentes, elas têm o direito de decidir se querem continuar vivendo ou não”, opina.
Ney conta que rever o filme pela terceira vez na Mostra CineBH o fez perceber “mais coisas”. “O que me atrai nesse filme na verdade é a grande liberdade com que se fala de tudo, com que se faz tudo, e o tom totalmente anárquico, que é uma coisa que me interessa. Porque as pessoas pensam que anarquia é bagunça. Anarquia não é bagunça, anarquia não é desordem, anarquia é cada um responsável por si e pelo outro. Então, nesse sentido eu estou muito tranquilo com este filme”, fala.
E revela detalhes de seu personagem: “Inicialmente iria fazer o papel do jardineiro, mas depois trocou e virei o poeta toureiro. Eu adorei, porque todas as vezes que abro a boca eu falo um verso do [Federico García] Lorca. Então, eu achei mais chique”, comemora.
Arte livre tal qual no cinema de Pasolini
“Eu já vinha de trabalhar com uma diretora anárquica, a Helena Ignez”, lembra Ney. “Eu acho que o cinema é o veículo das artes mais livre. O teatro também é. Mas o cinema é o que mais chega para a massa, o teatro é mais restrito. Embora no teatro se trabalhe com muita liberdade. Porque o beijo entre mulheres eu vi com Fernanda Montenegro e Renata Sorrah na década de 1980 [na peça “As Lágrimas Amargas de Petra von Kant”] e não provocava nenhum estremecimento na sociedade”, lembra.
E conta uma percepção sobre “Sol Alegria”: “Vendo pela terceira vez o filme, naquela sequência toda do convento, parecia que estava vendo um filme do Pasolini [cineasta italiano]. Estou falando porque sei que Tavinho não fez baseado nem inspirado no Pasolini, fez da cabeça dele, mas eu vi aquela cena e pensei: isso é um filme do Pasolini, que é um diretor que eu ansiava pelos filmes dele, ficava esperando. Ele lançava, e eu ia assistir”, revela.
“Me interessa a transgressão”, diz Ney Matogrosso
E vem mais trabalhos para o Ney ator? Ele responde:
“Acabei de receber um convite para um filme que não me interessa, para eu fazer um senhorzinho pacífico do interior. Não tenho interesse de fazer isso”, diz.
Mas, o que o interessa? “A transgressão é o que me interessa, sempre me interessou, está explícito no meu trabalho. Não sei ser de outra maneira”, responde.
“Então, sou coerente com isso ao aceitar no cinema ou no teatro papéis que sejam coerentes com a minha maneira de pensar. O primeiro filme que fiz foi com a diretora Ana Carolina, “Sonho de Valsa”, em 1987. Nele, fazia um casal de irmãos com a Xuxa Lopes, em uma relação incestuosa. Eu achava aquilo uma loucura, mas achei a ideia muito interessante de fazer aquilo num filme. Me interessa a transgressão”, conclui.
Por Miguel Arcanjo Prado, enviado especial a Belo Horizonte*
*O colunista viajou a convite da Universo Produção e do CineBH.