“Sempre quis todos os lugares preteados”, diz Mauricio Tizumba, ícone de MG
É fim de tarde quando este jornalista chega à sede do Tambor Mineiro, em Belo Horizonte. Sentado, bem à entrada do galpão decorado com temática negra no número 339 da rua Ituiutaba, no bairro Prado, lá ele está: Mauricio Tizumba.
Artista múltiplo, Tizumba é daquele tipo impossível de se colocar em uma caixinha. Ainda bem. Porque ele é bem maior que qualquer gaveta ou armário catalogador.
Afinal, transita com propriedade por diversas áreas. Sem dúvida, é um dos mais respeitados músicos de sua terra, exímio conhecedor dos sons precisos de todos os tambores de Minas, arte que, pedagogo nato, transmite às novas gerações.
Mas, Tizumba também é homem respeitado no congado, reisados e reinados, expressões máximas da cultura afromineira, termo que se confunde com ele próprio.
E, claro, é um grande ator. Daquele que, quando sobe ao palco, eclipsa tudo ao seu redor. Quem testemunhou sua atuação no musical “Gabriela”, de João Falcão a partir do clássico de Jorge Amado, sabe disso muito bem.
Também, é homem do povo, fortemente ligado ao trabalho social que há décadas preserva as raízes e devolve o orgulho e a autoestima à população negra em Minas, da qual tornou-se referência maior.
Um dos grandes nomes das artes em Minas Gerais, ele celebra seus 60 anos de vida com a biografia “De Camarões: Veredas de Mauricio Tizumba”, com pesquisa e projeto editorial de Elias Gibran, Pedro Kalil e Viviane Maroca e lançamento pela Editora Nandyala.
Como é de seu feitio, o livro chega com festa em nobre espaço: nesta sexta (31), às 20h30, ele realiza show com o parceiro Sérgio Pererê no Teatro do Centro Cultural Minas Tênis Clube, templo da elite mineira. Afinal, Tizumba é pioneiro na ocupação negra de nobres espaços em diálogo com todas as cores.
A festa ainda tem prorrogação: no fim da manhã deste sábado (1º), às 11h, toca a céu aberto ao lado de seu Tambor Mineiro na praça Duque de Caxias, em Santa Tereza, em BH, dentro da programação musical da 12ª Mostra CineBH. “Eu não paro de trabalhar”, admite o homem que já recusou convites da Globo por conta de sua disputada agenda.
Mas, voltemos à entrada do Tambor Mineiro, onde Tizumba aguarda o Blog do Arcanjo no UOL.
Resolvo, de cara, contar que sou neto de Dona Oneida, a Mãe Gigi, ialorixá mineira nascida em Ouro Preto que fundou em BH em 1982 o primeiro afoxé de Minas, o Afoxé Ilê Odara, e mulher de Velho Dico, sambista da velha guarda mineira, meu avô.
Tizumba parece não crer e se emociona.
“Rapaz, achei que iria só dar uma entrevista e você me conta isso! Eu cresci ali, no bairro Aparecida, conheço todos da rua São Clemente, onde morava seus avós, tenho um respeito enorme por sua avó”, diz, ainda impactado. “Que louco isso, você, neto dela, aqui, agora, me entrevistando. Essa vida é muito louca. Sua avó te deixou algo muito precioso”, fala.
E foi no passado de menino do bairro Aparecida, em Belo Horizonte, que o talento de Tizumba despontou. Primeiro, na escola, onde se destacava em qualquer apresentação.
Depois, o menino talentoso foi para a TV, onde se apresentava em programas ao vivo da década de 1960 com canções românticas e da jovem guarda. Era tão carismático que virou hors-concurs, senão ganharia todas as disputas.
A criança prodígio virou exímio músico na adolescência e juventude, quando tornou-se nome disputado nos bares de Belo Horizonte. “Toquei em todos”, lembra, revelando que muitos dos bilhetinhos que recebia dos clientes com pedidos de música agora ilustram seu livro. “Sempre tentei guardar tudo da minha carreira, e olha que muita coisa se perdeu, mas consegui ter um arquivo de muita coisa”.
Os donos dos estabelecimentos o disputavam. Tizumba no som era garantia de casa cheia. E foi, tal qual Milton Nascimento, que nos bares da vida aprendeu a dialogar com toda a música brasileira, sem jamais perder sua identidade.
“Posso cantar e tocar qualquer música, mas faço do meu jeito”, admite, lembrando que não se avexa em simplificar acordes. “Dou a tudo o meu toque, o toque do tambor mineiro”, afirma.
Lembra que Mart’nália, a filha de Martinho da Vila que se apresentou no último Festejo do Tambor Mineiro, que reuniu mais de 5.000 pessoas no último dia 19 de agosto, também adaptou suas canções ao ritmo de Tizumba.
“Aqui, até o samba muda, fica o samba do tambor mineiro, colocamos o nosso tempero”, explica, antes de revelar com orgulho o carinho de gente como Elza Soares por sua grande festa popular, já tradição no calendário cultural belo-horizontino.
E a tradição de fazer uma música intimamente ligada às matrizes africanas vem de berço. “Minha mãe, Eni, foi a primeira ekedi de candomblé de Belo Horizonte e durante muitos anos foi a única”, conta.
De menino, viu misturado o candomblé baiano ao congado mineiro com seu sincretismo entre o catolicismo e o culto afro. Desde muito novo, se envolveu com a luta da negritude.
“É preciso valorizar a batalha que tivemos um dia. Com 18 anos, já estava envolvido nessa discussão da condição social do negro. Durante muito tempo eu fui o ‘neguinho queridinho da cidade’, mas nunca me contentei em ser o único”, diz.
“Às vezes a gente vira exceção. O que eu sempre batalhei é para a gente deixar de ser exceção. É muito ruim sermos os únicos em determinado espaço. Sempre quis todos os lugares preteados”, afirma.
Tizumba conta que sempre foi estratégico. “Meu lado Angola sempre falou muito forte. Se eu tivesse batido de frente, eles tinham me tirado de cara da jogada. Conheci Abdias do Nascimento, vivi a capoeira, vivi a negritude que vem da Bahia, vivi a negritude congadeira ligada ao catolicismo, vivi o candomblé com minha mãe, minha avó era benzedeira. Então, hoje quando eu vejo a meninada nessa luta, eu fico muito feliz”, fala.
Por isso, celebra a nova geração negra empoderada. “Aí que eu acho legal essa chegada dos meninos. Eles chegam batendo de uma outra forma. Eles nem agacham, é na testa, batem pra valer. Isso é bom. Mas, eu também acho que não temos de trazer guerra para dentro do ilê, bater em quem é nosso, em quem é aliado”, pondera.
Sobre o livro, diz que veio por insistência de pessoas ao redor. “Nunca tinha pensado em escrever livro. Como sou um negro de origem pobre, eu fui aprender a ler direito com quase 30 anos, quando fui fazer teatro e precisei ler muita coisa. Não me sinto competente para escrever. Se eu te mandar uma mensagem pelo whatsapp, não é erro de corretor”, fala, dando uma de suas carismáticas risadas. “Ainda bem que tive gente competente comigo nesse livro”, complementa.
Ele conta que o título vem de sua origem geográfica, descoberta através de um teste de DNA. “Pensava que era Angola, mas deu Camarões”. E conta que, ainda sem saber isso, na época do sucesso da seleção de Camarões na Copa da Itália de 1990, dizia que se parecia com o jogador camaronês Roger Milla em seus shows.
“Normalmente, o branco sempre fala: vovô era espanhol, vovó era italiana, vovô era português, sabem até a cidadezinha de onde partiram. Alguns têm esse link mesmo e outros até dão uma forçada de barra”, diz. “E a gente não tem isso, por causa da história que foi feita com os negros, que desmancharam nossa história. O Rui Barbosa mandou queimar todos os documentos referentes à escravidão”, recorda.
“Nós, negros, nunca sabemos nossa origem. Então, eu fiz esse estudo nos Estados Unidos, pelo DNA África. E descobri que eu vim de Camarões. Descobri que em Minas Gerais chegou uma leva muito grande de camaroneses, e a gente não sabia”, revela.
O papo vai caminhando para o fim, e Tizumba diz que o faço se lembrar, de certo modo, de Dalmir Francisco, grande jornalista mineiro e professor do curso de Comunicação Social da UFMG, que morreu no ano passado.
Conto, então, que Dalmir sempre foi uma referência, amigo de minha avó dos meus tempos de menino no Afoxé Ilê Odara, e que, mais tarde, foi professor na Fafich, a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, meu único professor negro na universidade, o único que falava de cultura afrobrasileira.
Tizumba lembra: “O Dalmir foi quem me iniciou nessa coisa do movimento negro, ele me ensinou muita coisa. Pena que ele também foi muito perseguido na universidade, por tudo que ele representava… Mas é lindo que temos também essa conexão”.
Antes da despedida, com a noite já começando, Tizumba vai ao escritório. Volta com duas camisetas, uma com seu nome e outra do Festejo do Tambor Mineiro. “Para você usar lá em São Paulo”, avisa.
“Essa foi uma entrevista muito especial para mim, uma surpresa que não esperava”, diz, antes de pegar um exemplar de seu livro, onde autografa: “Para Miguel Arcanjo, com carinho e axé. Me senti muito emocionado ao encontrar você, neto de Mãe (Gigi) D. Oneida. Obrigado por esse encontro ancestral. Tizumba. 27/08/2018”.
Por Miguel Arcanjo Prado, enviado especial a Belo Horizonte*
*O colunista viajou a convite da Universo Produção e da Mostra CineBH.