Uma das peças mais marcantes do 5º Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, realizado pelo Sesc São Paulo entre 5 e 15 de setembro na Baixada Santista, foi a uruguaia “Lítost, la Frustración”.
Trata-se de um inventido e burilado texto de Jimena Márquez, que também dirige a encenação.
Em foco está uma família disfuncional sob comando doentio de uma mãe, ex-prostituta, defendida com bravura e competência pela excelente atriz Gabriela Iribarren, um furacão cênico.
Ela tem dois filhos. O primeiro é um menino com sonhos de dança reprimidos pela mãe homofóbica, interpretado pelo bailarino Santiago Duarte, cujo bailado enérgico e sincopado parece saído de um filme de Fred Astaire.
A segunda é filha defensora do irmão e freudianamente contra a mãe, que maltrata e explora a ambos de forma impiedosa. A garota é interpretada também com desenvoltura por Jimena Vázquez, jovem atriz repleta de potência.
A segura e propositiva direção de Jimena Márquez alivia a crueza da história a todo instante com um olhar humorado para toda aquela desgraça.
E ela consegue isso ao inserir o bailado ardente de Santiago ou propor uma eficiente movimentação cênica das outras duas atrizes, formando sempre um conjunto poético.
Márquez ainda investe em recursos épicos para despir o drama, deixando-o sob análise do público e submetido a ironias do elenco e do próprio texto, abusando do metateatro.
Ódio gera violência
Falando na dramaturgia, ela demonstra ser fruto de farta pesquisa e tem como fio condutor palavras que existem apenas em um idioma.
Palavras estas condensadoras de sentido e que não encontram tradução em outra língua, sendo obsessão da filha como válvula de escape da pesada vida em família.
Uma dessas, e a mais importante das muitas que a peça vai ensinando, é “lítost”, que titula a obra.
Trata-se de palavra checa que traduz alguém que é consciente de sua própria miséria e quer infligi-la também ao outro, como faz a perversa matriarca.
E é claro que tanto ódio exalado acaba por reproduzir mais ódio, que irrompe em forma de violência na peça.
A obra ainda tem figurino propositivo de Gerardo Egea, que também assina a simples e funcional cenografia, que dialoga com a luz pontual de Inés Iglesias e a envolvente trilha de Santiago Duarte.
Não sendo desmérito para o espetáculo em si, um detalhe da apresentação da peça no Mirada, contudo, precisa ser observado.
Em uma das cenas cruciais da história, o filho é chamado de “nena”, cuja tradução do espanhol para o português no festival ficou com a inocente palavra “neném”. Mas, na verdade, na peça o xingamento é homofóbico, lançado para o menino que gosta de dançar, tanto que dispara a ira violenta da irmã.
Assim sendo, melhor seria ter traduzido “nena”, neste caso, para “mariquinha”, “bichinha” ou “menininha”, assim o sentido de uma cena tão importante não se perderia. Se a peça tiver futuras apresentações no Brasil, cabe o ajuste.
Idenpendentemente deste pequeno lapso, “Lítost” é uma obra potente que nos deixa com um nó na garganta e cientes de que sem afeto e amor não é possível se construir nada.
Se embarcarmos nessa onda de ódio e vingança, vamos terminar todos sendo uns pobres coitados dignos de pena e lamento.
Crítica por Miguel Arcanjo Prado
“Lítost, la Frustración”
Avaliação: Ótimo ✪✪✪✪✪