É tarde de um dia típico de inverno paulistano. Faz frio e cai uma fina garoa em Higienópolis, onde Ana Kutner aguarda pacientemente o Blog do Arcanjo no UOL sentada em uma mesa de canto, na elegante padaria do bairro.
Conservando aquele mesmo ar de menina da novela “Colégio Brasil” no SBT em 1996, sob direção de Roberto Talma, a atriz carioca filha dos grandes atores Dina Sfat e Paulo José trocou em janeiro deste ano a Cidade Maravilhosa pela capital paulista pelo desejo de seguir fazendo o que mais ama: teatro.
Em tempos de tanto ódio, investe no afeto. Lança nesta terça (18), a partir das 18h30, na Livraria da Vila dos Jardins (al. Lorena, 1731) o livro “Passarinho”, que condensa o texto de seu monólogo do mesmo nome, cujo tema é justamente este: o afeto.
Para celebrar o livro, a peça “Passarinho” também volta ao cartaz em três sessões gratuitas na sala Paissandu da Galeria Olido (av. São João, 473), nesta sexta (21) e sábado (22), às 20h, e domingo (23), às 19h, onde atua no próprio texto sob direção de sua irmã Clara Kutner – os ingressos podem ser retirados no local uma hora antes de cada apresentação.
“Falar de afeto é falar de resistência, de contato com o outro, considerando seu interlocutor, tudo que a atual política brasileira não faz”, afirma, antes de complementar: “Fazer ‘Passarinho’ nestes tempos é resistir”.
Ana conta que os editais cariocas de fomento ao teatro foram todos esvaziados. “Querem eliminar o teatro e os grupos nas periferias. A cultura no Rio está completamente sucateada. Querem combater a pluralidade, as diferenças. Só que tudo que é fechado em si mesmo é muito perigoso. Estou muito assustada com o ódio”, afirma a atriz, lembrando o que seus antepassados judeus sofreram na Alemanha nazista justamente por conta do ódio.
Conta que ficou “absurdamente triste” com o recente incêndio no Museu Nacional, em sua visão “consequência do golpe que se instalou no país e cortou verbas da cultura”. Para Ana Kutner, fazer teatro é “estar em um lugar não da força, mas do afeto”. “É furar o cerco, valorizar o indivíduo em um país onde tudo que valoriza o indivíduo está sucateado, porque a maneia de escravizar um povo é eliminar sua cultura”.
Assim, considera a educação atual caminhando para um modelo “cruel, fascista, falsamente meritocrático”: “Só quem tem dinheiro para pagar uma escola cara poderá colocar os filhos em contato com a filosofia, as artes, a sociologia? Estamos vivendo um assassinato cultural”, protesta.
Por isso, diz que apoia a candidatura à deputada estadual no Rio de Dyonne Boy (PSOL), “que pretende fazer uma gestão de gabinete coletivo de gestão democrática igual aconteceu com as vereadoras do PSOL Áurea Carolina e Cida Falabella em Belo Horizonte”.
Ana faz mais teatro que televisão, apesar de não ter nada contra o veículo massivo. “Nossa profissão não tem nenhum glamour. O teatro me deu muitas oportunidades, trabalhei com o Antunes Filho, o Renato Borghi, o Gerald Thomas, o Felipe Hirsch, o Marco Nanini, o Francisco Milani, meu pai mesmo. Posso dizer que tenho muita sorte. E em televisão também: trabalhei com Roberto Talma, Ignacio Coqueiro… Eu fui escolhida pelo teatro, que é uma profissão difícil, que cospe quem ele não quer. Então, me sinto abençoada. Sobre televisão, eu quero fazer coisas interessantes, sim. Seja novela, séries, Netflix, essas coisas. Se for legal, está ótimo”, avisa.
Mas, confessa que sente enorme prazer em estar diante do outro presencialmente. “O outro me importa e me transforma. Você precisa do outro. ‘Passarinho’ não se dá se não for o outro. O público dialoga muito comigo. É um espetáculo do risco do contato. O afeto é uma rede poderosa de aceitação. Fura a caretice de um pensamento perigoso que está crescendo no Brasil”.
Por isso, diz que o Brasil precisa aprender a respeitar mais as diferenças, como as liberdades sexuais e de gênero. “Somos o país que mais mata homossexuais e transexuais no mundo. A questão sexual e de gênero não é uma escolha. Não é gostar ou não. É inquestionável onde o desejo do outro aponta”, pontua.
Na peça, mergulha no profundo da singeleza de suas memórias familiares para afetar os demais com poesia. “Vivo um momento especial, fizemos uma linda temporada no Sesc Copacabana e lançamos agora a peça em livro pela Editora Cobogó. Quero convidar a todos a irem trocar comigo no lançamento e nas apresentações”, convoca.
Fala que quer fazer novas temporadas da peça, que se adapta a vários palcos. “Quero rodar São Paulo e o Brasil. Podemos fazer em palco italiano, livraria, biblioteca, lona de circo”, conta. Ana sabe que o mais importante é o recado que deseja passar. “Quero dialogar com outro. Eu mesma opero luz e som em cena. Clara e eu quisemos botar tudo pra dentro”, conta a atriz, que fica em cena rodeada por 40 luminárias no chão.
Mesmo com um discurso tão envolvente, capaz de nos absorver por toda uma tarde fria de inverno paulistano, Ana Kutner lembra não gosta de ter “certezas absolutas de nada”: “Gosto da liberdade. A vida é rock’n’roll. Aconteça o que acontecer, vamos seguir pensando e resistindo”.
Por Miguel Arcanjo Prado
Fotos Bob Sousa