Crítica: “Arquivo Negro” faz comovente estreia na dança com Cia Pé no Mundo
Um clima de comoção tomou conta do público e dos artistas na estreia da Cia. de Dança Pé no Mundo. O choro foi farto não só no palco como também na plateia.
O grupo apresentou sua primeira montagem, “Arquivo Negro”, no Teatro Sérgio Cardoso, na noite desta quarta (11).
Os diretores, coreógrafos e bailarinos Claudia Nwabasili e Roges Doglas falaram ao fim da apresentação sobre como um clima pesado se abateu ao grupo.
Tudo por conta dos atuais rumos das Eleições no Brasil, que tornam ainda mais importante a temática da obra: a resistência negra ao longo de séculos de adversidades no Brasil.
Os diretores ainda se desculparam por algum atropelo técnico na estreia, lembrando que a tensão pairou sobre os artistas nesta reta final para o début.
Afinal, trata-se de uma companhia de dança jovem, formada por artistas negros, que recebeu incentivo do Fomento à Dança da Cidade de São Paulo para desenvolver seu primeiro trabalho.
Dançam vestidos com sobriedade e elegância pela figurinista Juliana Andrade os bailarinos Andrus Santana, Claudia Nwabasili, Cristiano Saraiva, Fernanda Mota, Munique Costa e Roges Doglas.
A coreografia é inspirada por elementos e personagens negros de destaque na cultura brasileira, sob orientação em pesquisa teórica de Mariana Queen.
Entre os nomes evocados, está Maria Carolina de Jesus, autora do clássico “Quarto de Despejo”. A coreografia de “Arquivo Negro” é repleta de força, que se impôs mesmo diante do nervosismo da estreia, algoz da precisão técnica.
O grupo também não deixa de lado a poesia (tão fundamental para as artes) na construção e desenvolvimento da montagem.
Assim, na obra com assistência de direção de Leticia Doretto movimentos e situações em cena evocam, com certa suntuosidade, a ancestralidade afro a todo instante.
Como tornou-se praxe a espetáculos artísticos nesta temática nos últimos tempos, há na obra uma necessidade de reforçar e sublinhar o discurso apresentado.
De tal modo, percebe-se na direção uma falta de confiança no corpo como elemento comunicador, evidenciada quando surge uma locução discursiva no espetáculo, em tom monocórdico que tira o foco dos corpos em dança para a fria palavra dita, quebrando a comunhão onírica estabelecida até então, tão fundamental à dança.
Para além das palavras e da coreografia, o grande destaque do espetáculo é a magistral trilha sonora original, composta por Alysson Bruno e executada com virtuosismo por ele ao lado dos músicos Fábio Leandro, Maurício Pazz e Renato Pereira. Um verdadeiro bálsamo.
Se a trilha é uma obra-prima, o mesmo não se pode dizer da iluminação pouco propositiva de Rossana Boccia, carecendo neste caso de uma visão de luz que dialogue, foque e potencialize a dança em cena: em muitos momentos, a luz excessivamente aberta em todo o palco fez justamente o contrário.
Também carece maior diálogo dos bailarinos com a pouco explorada cenografia de Ana Clara Santana e Cassia Yebra — nos poucos momentos em que tal diálogo ocorre, a obra cresce junto de sua cenografia.
De um modo geral, a Cia. Pé no Mundo faz uma estreia merecedora de aplausos fartos, sobretudo por seu caráter aguerrido, fruto de sua juventude, amor à dança e, obviamente, farta resistência digna de forte comoção nestes duros tempos.
Crítica por Miguel Arcanjo Prado
“Arquivo Negro – Passos Largos em Caminhos Estreitos”, da Cia. Pé no Mundo
Avaliação: Bom ✪✪✪
Quando: Quinta (11), 20h. 50 min. Última apresentação
Onde: Teatro Sérgio Cardoso (Rua Rui Barbosa, 153 – Bela Vista, São Paulo)
Quanto: R$20 (inteira) e R$10 (meia)