Renato Janine dá curso sobre série “Merlí” e critica “Escola sem Partido”
Com seu instigante professor de filosofia de uma efervescente turma do ensino médio, a série catalã “Merlí” fascinou Renato Janine Ribeiro, professor titular de Ética e Filosofia da USP (Universidade de São Paulo), ex-ministro da Educação entre abril e setembro de 2015 e professor visitante da Unifesp.
Tanto que ele resolveu utilizar a série de sucesso na Netflix como base do curso que começa nesta semana na Casa do Saber (r. Mário Ferraz, 404, tel. 11 3707-8900), em São Paulo: “Merlí: Filosofia para a Vida” — as inscrições ainda estão abertas. Serão três encontros às quartas, das 19h às 22h, a partir do dia 28.
Doutor em Filosofia pela USP, após mestrado na Sorbonne, em Paris, Janine Ribeiro foi professor visitante na Columbia University em Nova York, diretor de avaliação da Capes e vencedor do Prêmio Jabuti em 2001 com o livro “A Sociedade contra o Social: O Alto Custo da Vida Pública no Brasil”.
Ele recebeu o Blog do Arcanjo no UOL em sua casa, em São Paulo, para esta entrevista exclusiva, na qual falou sobre não só sobre a série “Merlí”, mas também sobre temas como educação, aumento da expectativa de vida e deu sua opinião sobre o famigerado projeto “Escola sem Partido”: “‘Escola sem Partido’ é na verdade a escola com mais partido que existe”, falou.
“Claro que o Merlí seria enquadrado no ‘Escola sem Partido’. Porque o Merlí diz uma série de coisas que são anticonvencionais. O Merlí faz um experimento de liberdade nas aulas dele”, afirmou. “Se existe um fator que vai possibilitar o Brasil se desenvolver economicamente, segundo o Banco Mundial e os maiores economistas internacionais, é a educação. E uma coisa como o ‘Escola sem Partido’ vai nos atrasar no desenvolvimento econômico. E o Brasil não pode se dar esse luxo. O Brasil precisa de um PIB maior”, declarou durante a entrevista.
Leia com toda a calma do mundo.
Miguel Arcanjo Prado — Como você descobriu a série “Merlí”?
Renato Janine Ribeiro — Por acaso. Alguém comentou, vi na Netflix e fiquei fascinado. Porque é como eu entendo o ensino de filosofia, sobretudo no nível médio.
Miguel Arcanjo Prado — Como?
Renato Janine Ribeiro — A filosofia é extremamente importante para as pessoas aprenderem a pensar, a pensar mais. Mas ela não pode ser confundida com o aprendizado da história da filosofia. O ensino médio é onde termina a escolaridade obrigatória de 14 anos. Neste momento, o aluno tem de sair com uma formação para a vida que o capacite para entender o mundo onde ele está. As disciplinas do ensino médio deveriam ser entendidas não como resumo do que será dado depois na faculdade, seja em filosofia, química ou história, mas como uma formação para a vida. No caso da filosofia, que aluno guarde o pensamento essencial, que é pensar.
Miguel Arcanjo Prado — O Merlí faz isso?
Renato Janine Ribeiro — Sim. O Merlí forma pessoas. Em 40 episódios, lidando com dezenas de filósofos diferentes, ele vai pegar de cada um deles uma contribuição essencial para a pessoa aprender a viver.
Miguel Arcanjo Prado —“Merlí” prova que é possível tirar a filosofia desse lugar inalcançável no qual é vista e trazê-la para o meio popular? É possível ser simples com a filosofia?
Renato Janine Ribeiro — Sim. Nós temos isso no Brasil há cerca de 30 anos. Desde que começou uma popularidade maior da filosofia. Hoje temos grande número de cursos livres, palestras, conferências de pessoas com formação filosófica e que são chamadas a lecionar com assuntos que contribuem para melhorar a qualidade das dúvidas, melhorar a qualidade das perguntas. Não é que o papel da filosofia seja dar as respostas. O papel da filosofia é tornar as perguntas mais sofisticadas. A ideia de uma resposta definitiva, cabal, em matéria de ética ou de lógica é contestável. Porque as ideias estão sendo questionadas, vivemos em um mundo de ebulição intelectual. Nesse universo é importante ter a mente alerta para não ficar dependente de respostas fáceis e erradas.
Miguel Arcanjo Prado — Como vê o atual sucesso de filósofos mais populares hoje em dia tanto num campo de pensamento à esquerda quanto à direita?
Renato Janine Ribeiro — A palavra filósofo a gente usa com muita restrição na área de filosofia. No Brasil, costumamos utilizar a palavra filósofo para pessoas que têm uma obra consagrada: um Sartre, um Merleau-Ponty. O que não impede de que haja muitos professores de filosofia ou pessoas com formação filosófica que dão sua contribuição à discussão. Essa contribuição procura dar maior rigor às questões que estão sendo tratadas. É importante que essa discussão não esteja dependente de uma linha política.
Miguel Arcanjo Prado — Por quê?
Renato Janine Ribeiro — Porque o compromisso fundamental de quem pratica a filosofia não é com uma linha política, mas com o conhecimento. A palavra filosofia tem uma origem que é muito interessante. Ela quer dizer ao pé da letra “amigo do saber”. A ideia é que o filósofo não é um detentor do saber, não é seu dono, não é aquele que sabe. É aquele que gosta do saber, que tem afeição por ele. Por isso, procura se aproximar dele, mas sem nunca se atrever a ser dono dele. Tem que haver sempre na filosofia uma certa modéstia, uma certa dúvida sobre o que está sendo dito. O papel da filosofia está muito mais em questionar e fazer as pessoas perceberem que há outros modos de pensar do que necessariamente entregar um caminho.
Miguel Arcanjo Prado — O filósofo tem de ter mais dúvidas do que certezas?
Renato Janine Ribeiro — Claro. Não é fortuito que o primeiro grande filósofo da modernidade, Descartes, começa pelo que ela chama de “dúvida metódica”. Ele vai colocar em dúvida tudo. Um lápis dentro do copo d’água parece quebrado. Qual a percepção correta? A dúvida é fundamental para você poder pensar. Isso você tem em todas as ciências. Por que temos muito conhecimento hoje? Porque com muito atraso descobrimos a ideia de Sócrates de 2500 anos atrás: “Só sei que nada sei”. Um homem inteligente, o primeiro dos grandes filósofos, tem como principal mensagem que o universo que ele ignora é muito maior que o universo que ele conhece. Se não tivéssemos isso, não teríamos tanto avanço científico.
Miguel Arcanjo Prado — E quem está cheio de certezas?
Renato Janine Ribeiro — As pessoas que têm muitas certezas, que não colocam em dúvida, estão hoje atrasadas no nosso mundo. Porque não são capazes de acompanhar o ritmo da descoberta do conhecimento na qual vivemos.
Miguel Arcanjo Prado — Merlí enche seus alunos de dúvidas, que mudam os estudantes e seu entorno. Inclusive gerando reação não só nos adolescentes, mas também nos outros professores e corpo de direção da escola. Como vê isso?
Renato Janine Ribeiro — Gosto muito de um episódio no qual o menino Paulo, de 12 anos, que não é bem aluno do Merlí, é questionado porque mente muito. Então, a diretora da escola quer castigá-lo devido às mentiras que ele conta, mas o Merlí tem outra solução: “escreva contos”. Descobre nele o talento de inventar, de mentir, que é o talento do ficcionista, então o incentiva a usar esse talento para o bem, a ser um escritor. A capacidade de perceber uma coisa diferentemente do banal é a grande característica do Merlí. Perceber que você tem caminho de soluções pela liberdade. Ele não faz nada que seja punitivo, ele faz tudo apela à liberdade e à responsabilidade que decorre dela. Isso choca a formação habitual, que quer deixar as pessoas conformistas. Merlí traz a verdade da liberdade que possibilita às pessoas encontrarem um caminho melhor.
Miguel Arcanjo Prado — Por que a liberdade de pensar incomoda tanto?
Renato Janine Ribeiro — Porque há um certo lado confortável em você aceitar verdades estabelecidas, mesmo que não sejam verdadeiras. Aceitar dogmas. É você dar sempre a mesma matéria, sempre o mesmo curso, seguir os padrões colocados, que reduz sua chance de entrar no conflito e o risco. Uma coisa importante no Merlí é que cada episódio é cheio de conflitos e todos terminam em uma reconciliação num nível mais elevado. Ninguém passa o pano no conflito, mas sempre se chega ao encontro entre as pessoas, que são capazes de viver dentro do conflito e, mesmo assim, preservarem relações de afeto, de cooperação, de colaboração mútua. Essa lição é muito importante. Estamos vivendo em um mundo de conflito no qual as pessoas não estão sendo preparadas para isso.
Miguel Arcanjo Prado — O Brasil atualmente vive um grande conflito político que chegou dentro das famílias, com membros brigados entre si nestas últimas eleições. Qual lição da série “Merlí” para nosso país? É possível uma reconciliação a este Brasil rachado?
Renato Janine Ribeiro — Isso depende muito da capacidade de escuta. É escutar o outro, tentar entender o outro, não demonizar o outro, compreender que existem posições diferentes. Agora, temos de distinguir dois pontos: uma coisa é divergência de opinião, que são legítimas; outra coisa são fake news. Fake news é mentira. Divergência de opinião não é o mesmo que mentir. Vou dar um exemplo. Você ensinar Darwin, a teoria da evolução, na biologia, isso não é opinião, isso é ciência. Você ensinar criacionismo, isso é matéria de religião. Você pode ensinar isso numa aula de religião, jamais numa aula de ciência. Então, a divergência de opinião cabe em certos pontos, mas quanto à ciência, o conhecimento tem de ser rigoroso. E o contrário da ciência é a mentira.
Miguel Arcanjo Prado — A “Escola sem Partido” está na pauta do dia. Como enxerga os desdobramentos disso no campo da educação caso esse projeto se torne realidade?
Renato Janine Ribeiro — “Escola sem Partido” é na verdade a escola com mais partido que existe. Porque ela defende uma série de posições tradicionais, convencionais, que foram doutrinação que sempre existiu nas escolas. Doutrinação para as pessoas obedecerem aos seus chefes, doutrinação para as pessoas seguirem a moral convencional, doutrinação no sentido de esconder das crianças e adolescentes a verdade sobre educação sexual. Então, um dos pontos cruciais da “Escola sem Partido” é a oposição à educação sexual. Ora, a educação sexual ou qualquer tipo de educação nunca pode ser doutrinação no sentido antigo, nem doutrinação num sentido diferente. Educação é a transmissão de conhecimento rigoroso sobre matéria científica mais a formação de valores universais como aqueles que estão nas Declaração de Direitos Humanos da ONU recepcionados em nossa Constituição. Então, essa educação abre as pessoas para a vida, abre as pessoas para saírem de seu mundinho. Porque cada um de nós é formado por um mundo que tem uma família, talvez uma religião, um bairro, uma classe social, e o processo de socialização saudável, normal de qualquer pessoa, é sair desse mundo pequeno e descobrir que o universo é muito mais amplo e diferente. Não é para ter medo disso. Ao contrário, é para ver nisso grandes chances de oportunidades. Que ninguém se esgote em seu grupo de origem. Quanto à educação sexual, que obviamente não consiste em pregar para que as pessoas tenham relações sexuais, isso elas decidirão com o tempo, sem educação sexual o que nós temos: gravidez precoce, abuso sexual e transmissão de doenças sexualmente transmissíveis, inclusive mortais. Então, é muito importante as pessoas terem uma formação correta sobre o que significa a sexualidade, entre outros pontos. Sobre a religião também é importante. As pessoas terem uma educação que mostre o fenômeno religioso, as diferentes religiões, inclusive o agnosticismo e o ateísmo, que são posições diante da religião que muitas pessoas assumem e são tão legítimas quanto as pessoas que escolhem ser religiosas.
Miguel Arcanjo Prado — Logo após o segundo turno eleitoral uma deputada incentivou os alunos a filmarem e delatarem seus professores, o que gerou um clima de receio nas escolas em todo o país. Teme que isso possa acontecer no Brasil? Professores sendo filmados e denunciados para algum órgão repressor?
Renato Janine Ribeiro — Mesmo sem se tornar lei e mesmo sendo inconstitucional a proposta da “Escola sem Partido”, muitos professores já estão se sentido inibidos. Escolas estão retirando livros do currículo. Professores estão com medo de serem demitidos dependendo do que derem na sala de aula. Isso é muito grave para a educação. Hoje no Brasil o professor não é bem remunerado, perdeu muito do prestígio social e, se além disso, ele viver sob ameaça de ser punido de alguma forma, sob risco de demissão, por dizer algo que vai contra o moralismo, se a liberdade dele de lecionar for limitada, o resultado será uma queda ainda maior nos níveis da educação brasileira. O que um país como o Brasil não pode aceitar. Se existe um fator que vai possibilitar o Brasil se desenvolver economicamente, segundo o Banco Mundial e os maiores economistas internacionais, é a educação. E uma coisa como o “Escola sem Partido” vai nos atrasar no desenvolvimento econômico. E o Brasil não pode se dar esse luxo. O Brasil precisa de um PIB maior.
Miguel Arcanjo Prado — O Merlí seria enquadrado no “Escola sem Partido”?
Renato Janine Ribeiro — Claro que o Merlí seria enquadrado no “Escola sem Partido”. Porque o Merlí diz uma série de coisas que são anticonvencionais. O Merlí faz um experimento de liberdade nas aulas dele. Ele questiona uma série de valores estabelecidos, o que não quer dizer que ele os impõe. Ele não acredita em Deus, ele deixa claro, mas isso é tão legítimo quanto ele dizer aos alunos que ele é católico, protestante ou muçulmano. Qualquer dessas afirmações é legítima. O que não é correto é fazer proselitismo, coisa que ele nunca faz.
Miguel Arcanjo Prado — O que anda fazendo depois que deixou o cargo de ministro da Educação?
Renato Janine Ribeiro — Eu publiquei dois livros. Um sobre filosofia política, “A Boa Política”, que é uma aposta ao crescimento da democracia, que teve um impacto extraordinário entre 1985 e 2015, período em que caíram as ditaduras comunistas e de direita e quase metade da população humana passou a viver sob regimes mais democráticos. Depois publiquei “A Pátria Educadora em Colapso”, que é um livro sobre minha experiência justamente no Ministério da Educação, como foi ser ministro da presidente Dilma Rousseff logo antes do impeachment, o que isso me ensinou sobre a política e sobre a importância da educação como fator fundamental na construção da sociedade melhor. E atualmente estou trabalhando na Unifesp como professor visitante e montando um instituto de estudos avançados cujo primeiro grande foco vão ser os impactos sociais e humanos diante do aumento da expectativa de vida. Em que medida o aumento da duração da vida humana dá mais chance de liberdade às pessoas e modifica as formas de vida e como nos preparamos para entender isso. As pessoas com mais expectativa de vida estão tendo mais liberdade para refazer suas vidas e isso é algo que entendemos muito pouco. Tanto que a discussão básica nessa área é sobre a Previdência Social, e ela é só a conta que se paga por um ganho. Mas nós não discutimos esse ganho. Qual o ganho temos ao viver mais? Passamos de 40 para 80 anos em expectativa de vida. O que ganhamos com isso?
Miguel Arcanjo Prado — A discussão esquece que os idosos vão fazer cursos, viajar, comprar, ir a restaurantes, gastar dinheiro de um modo geral, movimentando a economia formal e informal. A discussão no Brasil sobre aumento de expectativa de vida fica parecendo que ao viver mais os brasileiros só vão gerar gastos como se não fossem contribuir por mais tempo com a economia…
Renato Janine Ribeiro — Isso, fica só nisso, de que vai gerar gastos. Você veja, quando foi criada a aposentadoria no Brasil, nas décadas de 1930 e 1940 a maior parte, a pessoa morria antes de se aposentar. Hoje, ela vai viver isso. O Sesc São Paulo é extraordinário em relação a isso. Enche essas pessoas de cultura e atividade física. Talvez seja esse o grande caminho. Reduz gastos em saúde, saúde mental, cria novas oportunidades de mercado. E esse aspecto da longevidade tem sido pouco trabalhado fora o custo maior da aposentadoria.
Miguel Arcanjo Prado — Já que citou o Sesc, como viu a possibilidade de o novo governo mexer no Sistema S tal qual ele é atualmente, primordial para mantenimento de instituições como o Sesc São Paulo?
Renato Janine Ribeiro — O Sistema S é muito variado entre si. O que eu conheço muito bem é o Sesc São Paulo, que é extraordinário. Ele funciona como uma secretaria de cultura e atividade física autônoma e às vezes melhor que as secretarias municipais e estaduais dessas áreas. Então, seria um desastre você acabar com esse tipo de atividades.
Miguel Arcanjo Prado — Voltaria para a política? Aceitaria um cargo de secretário ou ministro novamente?
Renato Janine Ribeiro — Para aceitar você tem de ser convidado. Você não concorre a secretário ou ministro. O que posso dizer é que gostei da experiência. Foi em um momento muito difícil. Seria um prazer se eu pudesse contribuir para melhorar a educação no Brasil, teria muito prazer em fazer isso.
Por Miguel Arcanjo Prado
Fotos Bob Sousa
Saiba mais sobre o curso “Merlí: Filosofia para a Vida”, de Renato Janine Ribeiro, na Casa do Saber